Cada homem está pendurado por um fio, o abismo pode abrir-se debaixo dele a qualquer momento.
No romance de estreia “As primeiras coisas” (2013) Bruno Vieira Amaral desvenda de forma magnífica como se vivia no início dos anos 80 no Bairro Amélia, concelho da Moita, distrito de Setúbal, o problemático bairro onde o escritor cresceu.
O romance, distinguido com diversos prémios, espantou todos pelo perfeito dosear de real com ficção, e pela escrita poderosa.
Agora, neste segundo romance, o escritor pega no homicídio nunca esclarecido do seu primo João Jorge (o Joãozinho Treme, personagem de “As Primeiras Coisas”) e desenha uma investigação do assassínio e usa essa investigação como estratégia de recuperação e construção da sua própria memória: a infância, a família, o bairro e as suas personagens, Angola antes da Independência e os anos que se lhe seguiram, e a figura – ausente - do pai.
João Jorge, solteiro, pintor da construção civil, cidadão português nascido em Novo Redondo, Angola, gozão respeitador, um vadio amigo da família, acabou os seus dias num curral de porcos, brutalmente degolado por um cabo-verdiano. João Jorge veio de Angola aos treze anos e morreu na Baixa da Banheira, Portugal, aos vinte e um.
Trinta anos depois , Bruno Vieira Amaral movido pela curiosidade decide investigar tão brutal crime.
Não são os mortos que clamam por justiça ou vingança. Somos nós que imploramos por sentido, para que os nossos mortos não tenham morrido em vão, para que as nossas vidas não nos pareçam tão absurdas, esclarece o escritor/narrador.
Sem memórias vivas do primo, para reconstituição da sua personalidade, do seu percurso de vida e da derradeira noite, Bruno Vieira Amaral (sete anos aquando do crime) pesquisou arquivos da imprensa da época, consultou arquivos judiciais, explorou o passado da família em Angola, ouviu jornalistas, familiares, vizinhos e amigos. Depois, “agitou” tudo e escreveu uma comovente e nostálgica história, bem urdida e bem contada, feita com dados da investigação, segredos familiares, esquecimentos convenientes, equívocos propositados, verdades escondidas, silêncios, recordações do quotidiano no bairro, revelações drásticas sobre um Portugal com fome, desemprego, salários em atraso.
Numa mistura perfeita de ficção e realidade, de passado e presente, aqui e ali o escritor/narrador desvenda o seu quotidiano e as dificuldades e esmorecimentos que sentiu durante a escrita da história.
Por vezes a dificuldade de escrever é apenas isso, uma tarefa, uma actividade profana, repetitiva, banal, afastada das zonas tenebrosas da existência, das humilhações, dos desejos proibidos, das vinganças imaginadas. Então, prefiro afastar-me da escrita e montar prateleiras, furar paredes, introduzir buchas, apertar parafusos…
Interessante é ver também citados romances de Gabriel Garcia Márquez, Cormac McCarthy, W.G. Sebald,, Mario Vargas Llosa, Javier Cerca, Julian Barnes, entre outros, que o inspiraram e motivaram.
Tudo perfeito!
Na noite em que João Jorge foi assassinado não choveu. Nem na manhã seguinte. Era terça-feira de Carnaval, céu limpo e frio…
Fico por aqui.
Leia para saber quem foi, como viveu e porque foi o João Jorge morto como um porco, com a faca para os abrir...
Hoje estarás comigo no paraíso (Evangelho segundo Lucas, 23:39-43) é interessante mas... demasiado longo. Bruno Amaral Vieira, senhor de uma escrita cristalina, viciante e inteligente (tanto deve ter lido já este "senhor escritor" que herdou do avô o amor pelos livros e pela História), podia ter dito tudo sem se perder em excessivas minúcias.
Eu aconselho a leitura dos seus dois romances. O primeiro é o meu favorito, mas com este quase gastei um lápis... A sublinhar, claro!
ONDE É QUE A HISTÓRIA DA NOSSA FAMÍLIA contamina a nossa história individual?
Pense nisto!
Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral
Ed. Quetzal, 2017
363 págs.
Vou gostar de ler!
ResponderEliminarBj
Olá Gracinha!
EliminarComeça pelo primeiro romance, encantador.
Depois, parte para este.
Beijo e bom fim-de-semana.
Olá, é uma leitura interessante, assim como, os mortos (alguns) não partiram em vão, homens que marcaram a historia positivamente, o passado familiar contamina-nos a historia que escrevemos em vida, sem duvida!
ResponderEliminarFeliz fim de semana,
AG
Olá António!
EliminarPara o bem e para o mal, somos física e emocionalmente moldados pelo passado familiar. Sem dúvida!
Foquemo-nos no bem, sejamos autênticos, gratos e deixemos a vida fluir.
Bom fim-de-semana.
Abraço.
Deve ser muito interessante, sim, Teresa.
ResponderEliminar"ONDE É QUE A HISTÓRIA DA NOSSA FAMÍLIA contamina a nossa história individual?"
Onde? Em tudo, somos o reflexo de todas as coisas acontecidas, mesmo depois de 'trabalhadas' fica o resquício na memória.
Beijo, amiga, nas minhas andanças pelas livrarias daqui, até vou perguntar...se tirou o prêmio José Saramago, deve ter sim.
Olá Tais!
EliminarReflexo ou não, tentemos que o que há de substancial em nós seja o bem que os nossos antepassados foram deixando pelo caminho.
Isso me basta!
Bruno Vieira Amaral venceu o Prémio Saramago em 2015, com "As Primeiras Coisas", seu romance de estreio. Fabuloso!
Postei sobre ele em Abril de 2016.
Beijo.
Sim, tudo fica, o bem vem ao natural e outras 'cositas' nem tanto, trabalhamos e damos o destino apropriado, ou seja, deletamos. Nossa carga genética é interessantíssima, vai se multiplicando pelos pais, avós dos dois lados (4 e +4 ) e assim por diante os filhos vão herdando. E quando vemos, temos algo muito parecido com os bisavós, e muito claro. Ontem estávamos conversando sobre isso aqui, sobre a carga genética que trazemos, que herdamos.
Eliminarbeijo!
Tenho na minha lista para comprar...
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Olá Graça!
EliminarVale a pena ler. Os dois romances.
Que bem que ele escreve!!
Bom semana também para ti.
Beijo.