16 julho, 2016

"Um postal de Detroit" - João Ricardo Pedro


Ó estimado médico, repara no chão repleto de frutos podres!
No dia 11 de Setembro de 1985, pelas 18 horas e 37 minutos, dois comboios colidiram frontalmente no troço que liga a estação de Nelas ao apeadeiro de Alcafache - o Sud Express que rumava a Paris com o Regional proveniente da Guarda.
A colisão, seguida de incêndio, fez 49 mortos (alguns dos quais nunca chegaram a ser identificados) e 64 desaparecidos.
Este acidente, o pior da história dos Caminhos de Ferro Portugueses, é o ponto de partida do segundo romance de João Ricardo Pais, autor do celebrado “O teu rosto será o último”, Prémio Leya 2011.
Porquê esta escolha? Ele explica, antes do início do romance:
“Entre os passageiros do Sud Express, encontravam-se duas pessoas minhas conhecidas – uma sobreviveu, a outra não. Em 1985, nada as unia, para além da circunstância de viajarem no mesmo comboio, com destino a Paris.
Por mais que se procure, nenhuma delas poderá se encontrada nas páginas deste livro, mas as páginas deste livro não existiriam sem elas.
Quanto ao resto, é tudo inventado.”
Depois, avança para a primeira das duas partes/períodos do romance (1985-1986 e 1992-1993), com um telefonema da polícia a informar os familiares de Marta - jovem de dezanove anos, estudante de Belas-Artes, excelente nadadora, bela e feliz - que tinha sido encontrada a sua mochila nos destroços do Sud Express. Apenas isso, a sua mochila. Não havia corpo. Havia apenas dúvidas.
Por que motivo se encontrava Marta a bordo de um comboio com destino a Paris-Austerlitz? E por que razão apanhara esse comboio na estação de Porto-Campanhã, ou na estação de Aveiro, ou na estação de Coimbra-B, ou na estação de Pampilhosa, ou na estação de Mortágua, ou na estação de Santa Comba Dão, ou na estação de Nelas, quando, no mesmo dia, um outro comboio internacional com destino e Paris-Austerlitz partira da estacão de Lisboa-Santa Apolónia, bem mais próxima da casa onde estava a passar férias?
Estarão as respostas no quarto de Marta? Nos cadernos de desenho, verdadeiros diários de um quotidiano sórdido e maravilhoso? Na fotografia de Marta abraçada a uma amiga na Praia da Zambujeira do Mar? Nos muitos desenhos de uma mulher sem rosto? No postal guardado da cidade de Detroit? Na casa do Alentejo onde passava férias com Sofia, a colega de Belas-Artes encontrada dentro da banheira com os pulsos cortados, no mesmo dia do acidente ferroviário?
… trinta anos depois, seis internamentos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, sessões de psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choque elétricos, dou por mim deitado na cama, de olhos pregados no tecto, a pensar nesses dois pobres maquinistas, frente a frente, sem tempo para uma travagem de emergência… João, o irmão mais novo, recria os passos de Marta antes do acidente e, numa narrativa brutal, dolorida, delirante, desvenda tudo sobre ela, sobre os pais e sobre ele próprio – o mais excluído dos seus cadernos. E o que eu me esforcei por existir! O que eu me esforcei por merecer a atenção e Marta…

Postal de Detroit” conta-nos uma história bem engendrada, inteligente, bem escrita, sobre a “ténue fronteira que existe entre sanidade e loucura e os laços perturbadores que tantas vezes unem a vida à arte”. Contudo, a estrutura narrativa com avanços e recuos, o excesso de personagens secundárias e páginas de texto desinteressante, parecendo desgarrado da trama, tornam a sua leitura maçadora. Nem as muitas referências ao Sporting Clube de Portugal (o meu clube) me motivaram, e lá fui arrastando a leitura até ao fim. Lamento!
I never saw de Sea, escreveu Marta no seu último caderno.
O que escreveu mais?

Um postal de Detroit, de João Ricardo Pedro
Ed. D. Quixote, 2016-07-16
223 págs.

2 comentários:

  1. Terei de o ler, gostei do primeiro e desejo ver o que aconteceu entretanto à prosa do escritor.

    Muita gente nunca viu o mar. Uns de uma forma. Outros de outra. A vida é assim, morremos sempre com muita coisa por fazer.

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