Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. (Estilo)
Encontrei em “Os passos em volta”, publicado em 1963, um conjunto de historias engraçadas, inteligentes, irónicas, bem escritas, sobre a busca do poeta-homem de um sentido existencial, numa viagem incessante, angustiante e melancólica por vários lugares do mundo.
Incursão rara do poeta na prosa narrativa, as vinte e três histórias lêem-se num ápice.
Encontrei em “Os passos em volta”, publicado em 1963, um conjunto de historias engraçadas, inteligentes, irónicas, bem escritas, sobre a busca do poeta-homem de um sentido existencial, numa viagem incessante, angustiante e melancólica por vários lugares do mundo.
Incursão rara do poeta na prosa narrativa, as vinte e três histórias lêem-se num ápice.
Eis três excertos, escolhidos aleatoriamente:
Lugar lugares
“Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite.”
Polícia
“Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu – simples, tenebrosa – entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo com a chuva sobre a cidade. (…)
Annemaria tinha o dom da poesia subversiva. Subvertia tudo. A seu lado senti que a minha vida era importante. Que a ariscaria, sempre e sempre, que perderia, mas não cedendo de mim próprio. O amor do perigo embebedava-me.
Começámos então a lutar contra a polícia do mundo inteiro.”
Annemaria tinha o dom da poesia subversiva. Subvertia tudo. A seu lado senti que a minha vida era importante. Que a ariscaria, sempre e sempre, que perderia, mas não cedendo de mim próprio. O amor do perigo embebedava-me.
Começámos então a lutar contra a polícia do mundo inteiro.”
Poeta obscuro
"Acerca da frase - «Meus Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.» - julgo haver alguma coisa a explicar. Para já não sei onde a li, se a li, pois bem pode ser que ma tenham referido e uma frase referida, não lida, torna-se menos do autor. Tracei-a a lápis na parede em frente da cama. Estava sempre a vê-la. Isto à noite, no meio da noite, quando de súbito abria a luz e dizia para mim mesmo: - Não estou cego. – Ou, quando, acordando bastante tarde, verificava com surpresa que não tinha morrido durante o sono. Sofro destes tormentos da imaginação ou da sensibilidade desordenada. Neurose. «Faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.»
…é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno.
…é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno.
H.H. poeta obscuro? Nunca!
Leia, por favor!
Leia, por favor!
Os passos em volta, de Herberto Helder
Ed. Assírio & Alvim (9ª edição), 2006
194 págs.
194 págs.
Cara Teresa,
ResponderEliminarNão sei o que é a obscuridade. Sei o que é o disparate. O meu colega Álvaro da Horta também o sabe, e foi por isso que escreveu o texto que pode ler no link que lhe deixo abaixo, sobre a poesia de HH.
http://www.sed5contra.blogspot.pt/2015/06/sed-contra-crianca-tolinha-1.html
Cá vai o início, só para abrir o apetite:
"Quando um poeta falece, os poetas que ainda não faleceram têm por hábito elogiar muito a poesia do falecido. O mesmo não acontece com a classe dos padeiros ou, para não se dizer que comparo injustamente, com a classe dos larápios. Tal como seria bizarro que um padeiro que ainda não faleceu elogiasse as carcaças de um padeiro acabado de falecer, é pouco provável que haja larápio que, presente nas cerimónias fúnebres do larápio falecido, se lembre de elogiá-lo antes de se lembrar de lhe larapiar o que quer que lhe tenham posto nas algibeiras do fato com que vai para a cova. O fenómeno é certamente explicável, mas seria decepcionante se, votando-me agora às manhas da sociologia para demonstrar que faz parte da vocação de poeta elogiar outros poetas, deixasse de lado o caso particular do poeta que deveras faleceu há dias e cuja poesia foi elogiada por todos ou quase todos os poetas que, por razões que cabe aos deuses explicar, ainda não faleceram. Que a poesia de Herberto Helder não merece os elogios que recebeu, e que os poetas que o elogiam não merecem, portanto, senão a consolação de ainda não terem falecido como ele, eis o que a análise tratará de mostrar de seguida. Correndo o risco de estragar a surpresa que o título, tendencioso como qualquer título, talvez tenha estragado antecipadamente, nenhuns desses elogios são merecidos porque, apesar de o considerarem poeta, melhor o consideraria quem o considerasse uma criança tolinha. Para não maçar excessivamente quem leia, e porque revela o que há a revelar de uma criança tolinha que acabou laureada a demonstração das tolices de criança por que se destaca, das tolices púberes que lhe formaram o carácter e das tolices adultas com que se explica o resto da sua existência, divido a análise em três textos, cada um demonstrativo de cada um destes três géneros de tolice. Importa ainda avisar, não vá alguém queixar-se de ter sido enganado ao descer do pano do que ficar dito, que, sempre que chamar o poeta falecido ao palco para mostrar o que sabe fazer, assim iluminando o que afirmo através da ribalta da citação, me reportarei sobretudo à sua poesia inicial. Para o efeito, ela me chega. Quem achar, porém, que a parte da obra assim aclarada não representa o todo da obra do poeta, achando em propô-lo a má vontade ou a vilania de quem o propõe, não deve esquecer-se de que aquele que, por deformidade original, dá em nascer coxo a vida inteira passa a coxear. Em vez de tentar provar-se atleta, melhor faria tal coxo, de resto, se respeitasse o exemplo dado por quem assim nasceu e pusesse o empenho em “provar-se vilão”. Mereceria com certeza outras palmas."
Cumprimentos,
Francisco Lacerda
Olá Francisco,
EliminarNo meu "roldeleituras" cabem todas as opiniões.
As palmas que dou a cada uma delas... só a mim interessa.
Cumprimentos.
Esta obra foi-me dada a conhecer por um amigo e fiquei rendida. Gostei imenso destes contos de Herberto Helder.
ResponderEliminarBeijo