Este romance de E.L. Doctorow tem por base a história real, bizarra e comovente dos irmãos Homer e Langley, encontrados mortos em casa pela polícia nova-iorquina, depois de alertada pelos vizinhos para o cheiro pestilento que dali emanava.
No dia 21 de Março de 1947, a polícia entrou no nº 2078 da Quinta Avenida e encontrou Homer (n. 1881), morto de má nutrição, desidratação e paragem cardíaca. Langley (n.1885) só foi encontrado no dia 8 de Abril, num dos túneis armadilhados que montou no interior da residência. Levava comida para o irmão cego, quando foi soterrado pela tralha que, durante décadas, acumulou.
Da luxuosa mansão da família Collery, foram retiradas 140 toneladas de tralha.
O resgate dos corpos foi profusamente noticiado pela imprensa. A mesma imprensa que durante anos “perseguiu “os dois irmãos, divulgou pormenores sobre os seus pais, denunciou as queixas dos vizinhos, o corrupio dos cobradores e as deslocações da polícia e bombeiros à residência.
Homer e Langley nasceram numa família abastada, culta e com posição social invejável. O pai foi um médico conceituado e a mãe uma virtuosa cantora lírica. Foram ambos vítimas da epidemia de gripe espanhola, que atingiu a cidade em 1918. Homer escapou, mas muito debilitado. Langley estava longe, na Europa.
Sem herdeiros, a mansão ficou para a cidade e foi depois demolida e o espaço transformado num jardim público.
Eu sou o Homer, o irmão cego. Não perdi a vista de repente, foi como nos filmes, um lento fade-out… estava no final da adolescência… era o meu irmão, e não os meus pais, quem tinha o hábito de me ler em voz alta, quando deixei de conseguir fazê-lo sozinho.
Entremos, então, na ficção, na mansão e no quotidiano dos irmãos Collery.
Homer, o pianista exímio, educado por professores particulares, está sozinho na grande mansão. Apoiado por um mordomo (que ele rapidamente demite, por o achar demasiado dissimulado), um cozinheiro e duas criadas, aguarda o regresso do irmão. Mesmo depois de o exército lhe comunicar que Langley estava dado como desaparecido, Homer espera que ele volte para casa.
Havia qualquer coisa na filosofia de vida de Langley… que lhe conferia uma imunidade quase divina a um destino tão banal como esse de morrer numa guerra.
E Langley voltou para casa. Mas voltou um homem diferente.
Assim que o meu irmão voltou daquela guerra, percebi que havia um problema qualquer com a cabeça dele.
O que se passou depois da chegada de Langley é o teor duma longa carta que Homer dirige, mas nunca enviará, a Jacqueline Roux – a futura querida amiga de fim de vida - uma jornalista francesa que o salvou de ser atropelado no seu último passeio pelo Central Park.
As linhas dessa carta, feita de memórias, desvendam a mente de dois homens cultos, inteligentes, ricos (possuíam uma fortuna de milhões), solitários (Langley tem um casamento breve, mas ambos colecionam fracassos sentimentais), social e culturalmente activos e levam-nos numa visita guiada pelas mais relevantes alterações políticas, económicas, sociais e culturais da América e do mundo, do final do século XIX e século XX: a I Guerra Mundial, a Grande Depressão, a Lei Seca, a Guerra Fria, a guerra com a Coreia, a guerra no Vietname.
Mas, o Langley há muito que transformara o seu azedume pós-guerra numa vida mental iconoclasta…. Dali em diante ele poria em prática, de maneira total e desinibida, todo e qualquer plano ou fantasia que o assaltasse.
E começa a decadência…
Na mansão, entram gangsters, prostitutas e hippies. Empilham-se jornais, enciclopédias, cursos e toda a tralha que Langley compra ou apanha na rua, como um automóvel Ford modelo T, que montou no centro da sala de jantar, pianos, carrinhos de bebé, bicicletas, relógios, televisores, candeeiros, pistolas, máscaras de gás, etc.
Na mansão, deixou de haver água, luz e telefone (por recusa de pagamento). E criados.
E um dia, Langley chegou a casa com os matutinos, e sem dizer uma só palavra, dirigiu-se para as janelas e começou a fechar as portadas e a trancá-las.
E chegou o fim trágico…
Jacqueline, há quantos dias estou sem comer. Houve um estrondo, a casa toda abanou. Onde está o Langley? Onde está o meu irmão?
A relação complexa, intrigante e perturbadora que une os dois irmãos, e que o autor trabalha como filigrana, dificilmente sairá da minha memória e é com um nó na garganta que grito…fabuloso!
Homer & Langley, de E.L. Doctorow
Porto Editora, 2013
Tradução de Tânia Ganho
172 págs.
Sem comentários:
Enviar um comentário