A vida de um escravo é uma casa com muitas janelas e nenhuma porta. A vida de um homem livre é uma casa com muitas portas e nenhuma janela.
Finalmente li José Eduardo Agualusa!
E comecei bem, “Nação crioula” (1997) é um romance inteligente, comovente, e bem escrito.
Conta, com humor e sensibilidade, a intensa, secreta (divulgar é sempre profanar) e atribulada história de amor de Carlos Fradique Mendes (aventureiro português) e Ana Olímpia Vaz de Caminha (jovem angolana nascida escrava, viúva do abastado Victorino Vaz de Caminha, bela, inteligente, rica, poderosa e respeitada), ao mesmo tempo que aborda temáticas sérias: Portugal nos finais do século XIX; a sociedade colonial angolana e brasileira; o tráfico negreiro; o movimento abolicionista.
O autor foi buscar o protagonista ao livro de Eça de Queirós ”Correspondência de Fradique Mendes” (1900), uma compilação de cartas trocadas entre Eça e o amigo-ficcionado Fradique.
“Nação crioula” também é um entrelaçado de cartas. Vinte e seis. Poucas recebidas por Fradique Mendes, muitas enviadas por ele para madame de Jouarre (a madrinha); Ana Olímpia (a amada); José Maria (o amigo Eça). Cartas escritas entre 1868 e 1900, Luanda, Lisboa, Rio de Janeiro e Paris.
A primeira, de Maio de 1868, começa assim:
"Minha querida madrinha,
Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou um sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo…"
Nos anos seguintes, Fradique Mendes diverte-se, trata de negócios, viaja, "namora" a mulher amada.
Em outubro de 1876, Ana Olímpia é de novo escrava, propriedade de familiares do marido falecido. Depois de muitas peripécias Fradique consegue libertá-la e foge com ela para o Brasil no “Nação Crioula” (...) provavelmente o último navio negreiro da História.
Em Junho de 1877 Fradique Mendes escreve a Eça e Queirós:
"Meu querido José Maria?
Estou agora no Rio de Janeiro, e embarco segunda-feira para Lisboa, onde tenciono permanecer um mês ou dois antes de seguir para Paris e depois para Londres. Os motivos desta minha peregrinação, sendo os óbvios (tenho negócios a tratar e amigos a rever), são também outros e menos públicos: liguei-me recentemente a uma sociedade secreta, antiescravista (chamamos-lhe a Sociedade do Cupim!), e parto com o objectivo de recolher apoios para esta causa entre os governos e instituições da velha Europa…"
Em Outubro de 1878, comunica à madrinha que é pai:
"Quem lhe escreve esta carta não é mais o ocioso e irresponsável aventureiro que V. viu crescer, vestindo-se nos melhores alfaiates de Paris para ocultar a miserável nudez da alma, sentindo o mundo com sentimentos alheios, e cujo único projecto de vida era, simplesmente, deixar-se viver. Sou outro! Sou, desde há dois meses, pai de uma belíssima menina…"
Fradique Mendes morre em Paris, no inverno de 1988. Em Outubro ainda escreve ao amigo José Maria (penúltima carta do livro):
"O que é que nós colonizámos? O Brasil, dir-me-ás tu. Nem isso. Colonizámos o Brasil com os escravos que fomos buscar a África. Fizemos filhos com eles, e depois o Brasil colonizou-se a si próprio. Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente imaginário…"
A vigésima-sexta carta, de Agosto de 1900, é de Ana Olímpia para Eça de Queirós. É uma carta de desabafo que acompanha a correspondência de Fradique Mendes pedida pelo escritor para publicação em livro, “uma forma de homenagear o português mais interessante do século XIX”. Nesse mesmo ano, o livro chega (mesmo) às livrarias…
Se quer saber mais sobre os dois livros… vai ter de os ler. Este, recomendo-o aos que gostam de romance, aventura, histórias do quotidiano colonial português (o de Luanda é tragicamente hilariante), História.
Eu vou continuar a ler Agualusa. Isso é ponto assente.
Despeço-me, que se faz tarde…
Nação Crioula, de José Eduardo Agualusa
Ed. Quetzal, 2017
165 págs.
Vou gostar de ler pois gosto do escritor!!!bj
ResponderEliminarMuito bonito isso, abaixo:
ResponderEliminar"Quem lhe escreve esta carta não é mais o ocioso e irresponsável aventureiro que V. viu crescer, vestindo-se nos melhores alfaiates de Paris para ocultar a miserável nudez da alma, sentindo o mundo com sentimentos alheios, e cujo único projecto de vida era, simplesmente, deixar-se viver. Sou outro! Sou, desde há dois meses, pai de uma belíssima menina…"
Vi muito isso, e atualmente, a mudança que exerce nas pessoas quando nasce o primeiro filho.
Bem, deve ser um belo livro das cartas trocadas entre Carlos e Ana Olímpia, naquela época.
Teresa, isso me levou a lembrar a vergonha de sermos o último país a assinar a liberdade dos escravos, Lei Áurea, oficialmente Lei Imperial sancionada em 13 de maio de 1888, foi o diploma legal que extinguiu a escravidão no Brasil. Que coisa vergonhosa. É uma mancha horrorosa na história da humanidade.
"A vida de um escravo é uma casa com muitas janelas e nenhuma porta. A vida de um homem livre é uma casa com muitas portas e nenhuma janela."
Bem dito!
Beijo, amiga!
Já li "Nação Crioula". Magnífico.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.