17 outubro, 2014

"As velas ardem até ao fim" - Sándor Márai

Uma pessoa prepara-se para alguma coisa durante a vida inteira. Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera.
Decidi reler este extraordinário romance, ou melhor, este “tratado sobre a amizade, a paixão e a honra”, precisamente dez anos depois da primeira leitura, e voltei a deslumbrar-me com a excelência da escrita de Sándor Márai e a emocionar-me com a amizade que une Henry e Konrád. Só uma profunda amizade é capaz de sobreviver à passagem do tempo, à distância, à mentira, à traição.
Henry (filho de um oficial da guarda) e Konrád (filho de um funcionário público) conhecem-se num colégio interno localizado próximo de Viena. Têm ambos dez anos e, a partir desse dia, viverão como gémeos idênticos no útero da mãe: juntos no colégio militar, juntos nas férias e no Natal, juntos quando prestam juramento, juntos no apartamento arrendado junto da corte, nos primeiros anos de serviço.
Unia-os uma amizade séria e silenciosa, e ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
Konrád era sereno e reservado. Gostava de música. Tocava piano com a mãe de Henry. Lia livros sobre história, sobre o desenvolvimento social. Nunca há-de ser um verdadeiro soldado, dizia o oficial da guarda ao filho.
Henry não tinha ouvido para a música e achava-a perigosa. Apenas lia livros sobre cavalos e viagens. Seguiu a carreira militar. Chegou a general.
Havia algo no relacionamento dos dois, ternura, seriedade, dedicação, algo fatal…
Fatal foi Konrád ter apresentado Krisztina, sua amiga de infância, a Henry.
Logo depois, Henry casa com Krisztina, o seu único grande amor.
A relação dois dois amigos começa a mudar e, inesperadamente, sem dar conhecimento nem se despedir dos amigos, Konrád desaparece da cidade.
Mas regressa, quarenta e um anos e quarenta e três dias depois, e logo faz chegar uma carta ao general.
No castelo, que encerra segredos, silêncios e memórias, o velho general lê e relê a carta do amigo que lhe pede para o receber no castelo. Henry fala com Nini, a velha ama que o viu nascer e amamentou, a confidente – sabiam tudo um do outro – e pede-lhe para organizar um jantar como antigamente, sem esquecer as velas azuis na mesa.
- Que é que queres deste homem? – pergunta a ama.
- A verdade – disse o general.
- Conheces bem a verdade.
- Não conheço… É mesmo a verdade que não conheço.
- Mas conheces a realidade – disse a ama numa voz aguda, ofensiva.
- A realidade não é a verdade – retorquiu o general. – A realidade é apenas um pormenor.
Na hora do encontro, os dois amigos, agora com setenta e três anos de idade, examinam-se um ou outro. Konrád sabia que outra vez tinha de voltar ali e o general sabia que um dia chegaria esse momento. Viviam por essa razão.
Na sala de jantar, onde durante vinte anos não entrou um só convidado, os dois amigos estão sentados nos dois extremos da mesa, onde se alinham candelabros de porcelana com velas azuis. A meio da mesa está uma cadeira vazia. Aquele era o lugar de Krisztina, a mulher do general, que morreu aos vinte e oito anos de idade, oito anos após a fuga de Konrád.
Depois do jantar, ainda as velas ardiam no candelabro, o general faz ao amigo as duas perguntas que o atormentaram nas últimas décadas.
Pois é, mas... as velas arderam até ao fim e eu, às escuras, não posso revelar mais sobre o enredo deste excelente romance. Posso, sim, aconselhar vivamente a sua leitura. Será inesquecível.

As velas adem até ao fim, de Sándor Márai
Tradução de Mária Magdolna Demeter
Ed. Dom Quixote, 2001
153págs.

5 comentários:

  1. Já o li há tempos. Gostei muito:)
    Bom fim-de-semana:)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Isabel,
      Ler ou reler Sándor Márai é sempre um deslumbramento.
      Iniciei a leitura de "A herança de Eszter". Promete!
      Bjs.

      Eliminar
  2. Respostas
    1. Olá Luisa,
      Está na altura de partires à descoberta de um escritor fabuloso. Verdade!
      Bjs.

      Eliminar
  3. Olá!

    Sem dúvida, um autor obrigatório :)

    Boas leituras!

    ResponderEliminar