14 fevereiro, 2014

"O relatório de Brodeck" - Philippe Claudel

Os homens são estranhos. Cometem as piores atrocidades sem se interrogarem, mas depois não são capazes de viver com a recordação do que fizeram.
Depois de ler “Almas Cinzentas” e “A neta do Sr. Linh” – ambos sublimes e inesquecíveis – voltei ao escritor que sabe, como nenhum outro, criar personagens credíveis e colocá-las nos mais belos ambientes bucólicos. E sempre, num lugar e tempo indefinidos, para que possamos dar asas à imaginação, com as dicas que vai deixando aqui e ali.
É o caso deste romance, salpicado de referências à Segunda Guerra Mundial, e cuja acção decorre na…
Não sei!
Mas isso não interessa nada, quando ficamos presos a um romance com uma trama muito bem pensada, espantosamente bem escrito, brilhante e viciante, que começa assim:
Chamo-me Brodeck e não tive culpa de nada.
Insisto em dizê-lo. Quero que toda a gente o saiba.
Brodeck é dos personagens mais reais que "conheci" na ficção. Por momentos, deixei de ler Philippe Claudel e passei a ouvir Brodeck, o escrivão de uma aldeia perdida em inóspitas montanhas, que elabora relatórios para a Administração, sobre o estado da flora, das árvores, das estações e da caça, da neve e das chuvas.
A vida fluía calma na pequena aldeia, até ao malogrado dia em que a guerra ali chegou e tudo mudou.
Enquanto alguns habitantes tentavam agradar ao invasor, Brodeck reagia com passividade e, por isso, foi deportado para um campo de concentração.
Mas a guerra terminou e o Cão Brodeck  (assim era  tratado pelos guardas) regressou a casa.
E regressou ao seu trabalho de escrivão, com a concordância de todos os habitantes, que assim expiavam a culpa do colaboracionismo com o inimigo.
Brodeck está diferente, isola-se, faz grandes passeios e  não procura a companhia dos homens da aldeia, que têm a cabeça cheia de selvajaria e de imagens de sangue. Homens tolos, falsos puritanos, que cometerão o pior dos crimes sobre um estrangeiro que escolheu aquela aldeia para viver, um homem cordial e educado, que ocupa o tempo em longas e solitárias caminhadas, e a retratar a aldeia e os seus habitantes.
Habitantes que não gostam dos seus modos estranhos, muito menos de se verem retratados por ele, e o matam, perante a passividade das autoridades.
Autoridades, que ordenam ao escrivão que elabore um relatório oficial que branqueie o crime, sem procurar o que não existe, ou já não existe.
Brodeck aceita, contrariado e amedrontado.
À medida que elabora o relatório oficial – sempre espiado, cercado, vigiado - Brodeck escreve outro com a sua versão da verdade, onde cruza a história daquele homem misterioso - De Anderer – o Outro (nunca lhe perguntaram o nome e ele falava pouco, muito pouco), com a sua própria história de vida. E desvenda segredos, segredos sombrios, escondidos em cada pessoa, pedra, casa, rua, árvore, daquela aldeia, onde não há inocentes.
Aldeia que um dia ele também escolheu para viver. Só que nesse tempo, ninguém tinha medo de estrangeiros e foi bem recebido. Agora, o medo transformava os homens. Na verdade, Brodeck sabia-o. Aprendeu no campo de concentração.
Sabia-o quando escutou as palavras sábias do velho que encontrou no caminho: ... às vezes é preferível não voltarmos à terra de onde partimos. Lembramo-nos do que deixámos, mas nunca se sabe o que iremos encontrar, sobretudo quando os homens foram atingidos por uma loucura duradoura. Ainda é jovem… Pense no que lhe digo.
Mesmo assim, Brodeck voltou.
Mas depois pensou, e...
Chamo-me Brodeck e não tive culpa de nada.
O meu nome é Brodeck.
Brodeck.
Por favor, lembrem-se.
Brodeck.
Eu não esquecerei.
Fabuloso!
 
O relatório de Brodeck, de Philippe Claudel
Tradução de Isabel St. Aubyn
Ed. ASA, 2009
256 págs.

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