Numa tarde chuvosa de novembro de 1975, ao regressar a casa de forma imprevista, encontrei a minha mulher na cama com outro homem…. para guardar a memória dessa desdita, para remexer numa ferida que ainda não sarou, vou transcrever neste caderno o que aconteceu naquela tarde.
Eu, que já li o caderno, atesto que Juan Marés, continua apaixonado pela mulher, Norma Valentí, dez anos depois de a ter apanhado no quarto com um engraxador e de ela o ter abandonado.
E sabem qual foi a primeira coisa que ele viu ao abrir a porta do quarto? Não, não foi a mulher na cama com o amante, foi ele próprio, Juan Marés, reflectido no espelho do armário a abrir a porta, encharcado pela chuva… estonteado pelos ciúmes e pela certeza de ter perdido tudo, até a auto-estima. E é essa imagem, só essa, que ele não consegue esquecer e o levará a esconder-se atrás de uma identidade falsa, para reconquistar a mulher amada.
Estranho? Não, atendendo a que ela é uma milionária e ele um oportunista sem convicção… que aos trinta e sete anos deu o golpe do baú e depois não soube comportar-se.
Atenção, o Amante Bilingue não é só uma estranha e hilariante história de amor. É, acima de tudo, uma genial sátira irónica à dualidade social, cultural e linguística da Catalunha pós Franco.
Vejamos, então, quem são os protagonistas:
Juan Marés, filho de uma ex-cantora lírica alcoólica e de um pobre artista de variedades, foi criado na rua, longe da escola, nos duros anos do pós-guerra. Já rapazote, vendia banda desenhada e romances em segunda mão, nas esquinas do bairro onde vivia.
Norma Valentí, sociolinguista, herdeira de um fabricante de artigos de pele e cabedal, foi criada com todas as mordomias da alta burguesia catalã.
O acaso juntou-os numa greve contra o regime de Franco. Ele tinha trinta e sete anos, ela vinte e três. Apaixonaram-se. Casaram.
Foi um milagre que nos juntou…, diz Marés ao amante da mulher, numa longa e desconcertante conversa no quarto, enquanto ele lhe engraxa os sapatos.
Quatro anos depois, separou-os a fraqueza de Norma por charnegos de toda a espécie. Taxistas, empregados de mesa, cantadores e tocadores de unhas compridas e olhos felinos. Murcianos que cheiram a sovaco, a suor, a peúga suja e a vinhaça.
Norma não quis mais saber de Marés, falar com ele ou mesmo vê-lo.
Marés mergulha na lama da vida, no desespero, na solidão, na marginalidade. Ganha alguns trocos a tocar acordeão na rua. Continua apaixonado pela mulher, não esquece os dias de felicidade partilhada, os sonhos, o reboliço na cama...
Dez anos depois, cansado da vida desgraçada que leva, dos esquema que engendra para ver, ou apenas ouvir a voz da mulher, torturado e amargurado, frente ao espelho - a solidão inventa espelhos - Marés idealiza um plano surpreendente para reconquistar Norma: fazer-se passar por um murciano típico e impostor, um tagarela de longas patilhas e olhos verdes. Terá corpo e voz própria. Será Faneca, o engraxador. Sim, Faneca será o seu outro eu.
Dez anos depois, cansado da vida desgraçada que leva, dos esquema que engendra para ver, ou apenas ouvir a voz da mulher, torturado e amargurado, frente ao espelho - a solidão inventa espelhos - Marés idealiza um plano surpreendente para reconquistar Norma: fazer-se passar por um murciano típico e impostor, um tagarela de longas patilhas e olhos verdes. Terá corpo e voz própria. Será Faneca, o engraxador. Sim, Faneca será o seu outro eu.
Conseguirá Marés (ou Faneca?) seduzir Norma?
Eu sei, mas não digo.
Zonhar é fixe, mas não convém perder o zentido da realidá, palavras sábias do engraxador, o tal que Marés encontrou na cama com a mulher.
Estupendo!
Estupendo!
O amante bilingue, de Juan Marsé
Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Ed. D. Quixote, 2013
205 págs.
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