04 agosto, 2020

"Viagens" - Olga Tokarczuk


Ver e olhar são um mistério, tal como um grande mistério é o facto de existirmos.
“Viagens” (livro vencedor do International Man Booker 2018, da escritora polaca Olga Tokarczuk, psicoterapeuta, formada em Psicologia, Prémio Nobel de Literatura 2018) é um livro  original, fascinante, arrebatador, que nos prende da primeira à última página 
Uma construção narrativa feita de pequenas histórias, pensamentos, citações, informações enciclopédicas, anotações, divagações, desabafos, reflexões, crónicas, factos históricos, narrativas autobiográficas, ficcionais, instruções de uso, palestras, curiosidades, etc..;
Uma exploração do sentido de ser um viajante em viagem constante através do espaço e do tempo;
Uma reflexão sobre o corpo humano, a vida, a mente, a morte e o movimento. De onde provimos? Para onde vamos ou regressamos?
Uma «viagem» contínua, «tudo o que estagna acabará por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo que está em movimento consegue durar eternamente».
Um «rastrear de erros da criação e desacertos da natureza», diz a autora.
Partilho excertos de alguns dos inúmeros textos, e começo pelo primeiro, que ocupa apenas uma página (há outros mais pequenos). Atentem na capacidade imaginativa e na linguagem própria, acessível, poética.
(Existo)
“Nada acontece. (…)
Aquele final de tarde é a orla do mundo – tacteei-a por acaso e sem querer, quando estava a brincar. Descobri-o porque me deixaram sozinha por um instante e não o acautelaram. Claro está que acabei presa, numa armadilha. Tenho apenas alguns anos, estou sentada no parapeito da janela, observo o pátio frio. As luzes da cozinha da escola estão desligadas. Já se foram todos embora. As lajes de betão do pátio mergulharam na escuridão e deixei de as ver. Portas fechadas, toldos recolhidos, estores descidos. Queria sair, mas não tenho para onde ir. Somente a minha presença adquire agora contornos bem definidos, contornos que estremecem, ondulam, e isso dói. E, subitamente, descubro a verdade: não há nada a fazer – existo.”
(O Mundo na Cabeça)
“O meus pais não eram verdadeiros viajantes porque viajavam para regressar. (…) Depois, durante todo o ano, levavam uma vida sedentária, aquela vida estranha, em que de manhã se regressa àquilo que se largou à noite (…) Pelos vistos, não herdei o gene que faz com que as pessoas criem raízes, quando permanecem muito tempo no mesmo lugar. Já tentei várias vezes, mas as minhas raízes são sempre superficiais e qualquer brisa é capaz de me arrancar da terra. Não sou capaz de germinar, fui desprovida dessa faculdade vegetal. (...) A minha energia provém do movimento – da trepidação dos autocarros, da zoadeira dos aviões, da oscilação dos comboios e dos barcos."
(La Mano de Giovanni Battista)
“Existe mundo em demasia. (…)Parece que nada mais nos resta a não ser aprender a fazer escolhas até ao fim. E ser como aquele viajante que conheci num comboio nocturno e me disse que, de vez em quando, precisava de visitar o Louvre e de permanecer diante do único quadro que, na sua opinião, realmente merecia ser contemplado. Deter-se diante do quadro de João Baptista e seguir com o olhar a direcção indicada pelo dedo erguido do Santo."
(Estou)
"Cresci e evoluí. No princípio quando acordava em lugares estranhos pensava que estava em casa (…) Todavia, logo a seguir, entrei na fase que a Psicologia da Viagem designa como «Não sei onde estou». (…) A próxima etapa é a terceira, segundo a Psicologia da Viagem, é a etapa da viagem-chave, da viagem-coroa, aquela que constitui a meta final. Para onde quer que viajemos, viajamos sempre em direcção a ela. «Não importa onde estou». Onde estou – tanto faz. Estou.”

Existem dois pontos de vista acerca do mundo: a perspectiva da rã e a vista do pássaro em pleno voo. Qualquer ponto entre estes dois só serve para gerar o caos.
Este livro é diferente de tudo o que já li.
É mágico! É lindo! É perfeito!
E eu recomendo-o.

Viagens (2007), de Olga Tokarczuk 
Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz
Ed. Cavalo de Ferro, 2019
343 págs.


16 comentários:

  1. ando muito afastada da música..

    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

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  2. Tenho esse livro à minha espera na estante.
    Li um livro de contos de Olga Tokarczuk, que mão atirou fora da cadeira.

    Aproveita o verão, Teresa, ainda não sabemos como vai ser o outono.

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  3. Totalmente me identifiquei aqui. Vivo momentos parecidos.

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  4. Parece muito interessante.
    Abraço e saúde

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  5. Anotado, pois ainda não li nada desta autora.
    Boa noite, Teresa. :)

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  6. Querida Teresa, por mais que tente, não conseguirei acompanhar-te nas leituras. Já comprei um afiador, o lápis está com a ponta finissima, juntinho dos livros que tenho para ler, mas sempre me diz que quem tem de pegar nos livros sou eu, não ele; ele não pode fazer o trabalho sozinho por mais afiadinho que esteja. Olha dia 8 vou para o Algarve, mas, devido à pandemia, alugamos uma casa, perto da prais e com piscina só para nós; vou levar os livros, mas onde terei o tempo para ler? Já viste, comer em casa e com a sapequinha. Um abra da Beatriz que não pára un segunda e não gosta de obedecer? Vai ser uma casa cheia de gente, mas o trabalhinho vai ser muito. Costumava ir para Vila Moura, p o Crowne Plaza, mesmo junto do casino ( 1 semana ) e aí sim, eu tinha férias e lia bastante, mas este ano vai ser muito diferente. De qualquer modo, os livros vão comigo e, se não conseguir lê-los, pelo menos sairam de casa, como a dona. Amiga do coração, não vou anotar o nome deste livro, porque sei que tenho o nome dele no teu rol e enquando não " der cabo destes " que estão em cima da mesa, não comprarei outros. Obrigada pelas " dicas " sempre interessantes e desejo-te tudo de bom, sempre com SAÚDE e boas leituras. Sabes, estou com muitas saudades de abraçar os meus filhos e os meus netos mais velhos que, tadinhos, ficam com medo de contagiar os avós A pequenininha, essa tem sido a nossa alegria e os abracinhos têm sido muitos. Uma tristeza este virus, querida Teresa e, confesso, ando muito desanimada e com algum receio. Bem...temos de aguentar, não é verdade?
    Um abração do tamanho do mundo e carregadinho de amizade. Cuida-te, sim?
    Emilia

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    1. Ora bem, tu vais descer e eu irei subir... lá mais para o final do mês. 4º aniversário de neta e 45º do filho são para celebrar, mesmo em tempo de pandemia.
      Emilia, tenta descansar, arranja um tempinho para leres, diverte-te, partilha tarefas, na cozinha opta por coisinhas simples e rápidas, nada de receios, abraça muito. Vai tudo correr bem!
      Abraço apertadinho, querida amiga. Beijoquinhas para a pequenina.
      BOAS FÉRIAS!!

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  7. Mais uma sugestão que registo com todo o agrado.
    Bjs

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  8. Olá Teresa querida


    Adorei a dica, parecer ser bem interessante.

    Beijos
    Ani

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  9. Não gostei assim tanto do livro. Esperava mais. Ainda vou ler outro só para ter ideia mais acertada acerca da autora.

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  10. Querida Teresa, que bom que vibres com certas leituras! Esse livro faz minha cabeça, gosto desses temas que nos puxam, que nos levam a mergulhar mais fundo.
    Vi que a autora é psicoterapeuta, vai no âmago das questões. Tomei nota, mas não vai ser pra já, mas gosto de colocar o bloquinho na bolsa, nunca sei quando entro numa livraria... Ainda mais agora nesse pandemônio.
    Beijo, amadinha, uma boa semana!
    Aqui as coisas ainda não foram para o lugar, a coisa está difícil, esperamos a vacina para todos ficarem mais tranquilos.
    Até mais!

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  11. Quero muito ler a Olga Tokarczuk, mas ainda não comprei nenhum dos livros porque nunca sei qual escolher. Obrigada pela sugestão e desejo uma boa semana!

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  12. Fiquei interessada no livro e vou adquiri-lo. Estes excertos são lindos. É como diz o nosso Cardeal Poeta: A experiência da viagem é a experiência da fronteira e do aberto de que o homem precisa para ser ele próprio...
    Muita saúde, minha querida Amiga Teresa.
    Um beijo.

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  13. Dela ainda só li o "Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos" e gostei imenso: é um livro surpreendente em muitos aspectos, impossível de classificar e de leitura imparável.
    É uma autora que quero continuar a ler, sem dúvida.

    Boas férias, Teresa.
    🌻

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    1. Estou a ler "Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos" e sim é surpreendente e cativante.
      Maria, leia "Viagens".
      Beijo.

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