A arte pertence a toda a gente e a ninguém. A arte pertence a todo o tempo e a nenhum tempo. A arte pertence àqueles que a criam e àqueles que a usufruem. (…) A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo.
“O ruído do tempo", que ficciona a vida e obra do compositor e pianista russo Dmitri Chostakovich (1906-1975), foca-se particularmente na complexa relação do poder Estalinista com o atormentado e perseguido compositor.
Julian Barnes divide a narrativa, carregada de ironia, em três partes e chama ao protagonista: Dmitri Dmitrievich.
Um: No Patamar
Um homem, como centenas de outros pela cidade, à espera, noite após noite, de ser preso.
Dmitri Dmitrievich, ainda há três dias um compositor e pianista de sucesso, sem temperamento nem vocação para a política, um homem convencional, tímido e ansioso, espera pela polícia política no patamar e assim evita que a mulher e o filho de um ano o vejam ser arrastado para fora de casa. Espera junto ao elevador, de pé, com uma pequena mala que contém cigarros, roupa interior e pó dentífrico. Espera, vazio de memórias e cheio de medo.
Dmitri vê pela primeira um teclado aos nove anos. O encantamento é imediato. Na sua primeira apresentação pública, ainda estudante de música, conhece aquele que virá a ser o seu amigo e patrono: o Marechal Tukkachevski.
Aos trinta anos, Dmitri é o maior compositor da União Soviética. Aclamado pelo Poder e pelo povo, é o orgulho da Pátria.
Cai em desgraça em Janeiro de 1936, quando Estaline abandona a meio do terceiro acto, visivelmente desagradado, uma apresentação da aclamada ópera Lady Macbeth de Mtsenk, no Teatro Bolshoi e dois dias depois o jornal Pravda arrasa o espectáculo com um texto anónimo intitulado “Chinfrim em vez de Música”, provavelmente escrito pelo próprio Estaline; o Poder passa a dar atenção à sua música e a ele próprio.
Seguem-se perseguições, ameaças, censura e conversas com o Poder. Na Primeira das três Conversas, na primavera de 1937, Dmitri é acusado de conspiração contra o camarada Estaline. Incrédulo e assustado pede ajuda ao amigo Marechal mas este não lhe pode valer pois é acusado de cabecinha da conspiração. Mas tarde acaba detido e fuzilado e Dmitri percebe que também a sua hora está perto.
Dois: No Avião
Medo: o que sabiam aqueles que o infligiam?
Em 1949 o compositor integra a delegação russa que nos Estados Unidos participa num congresso para a Paz Mundial. O seu nome é a estrela da delegação. Dmitri lê um discurso preparado pelo Poder; critica e chama traidor ao amigo Stravinsky; responde com medo a perguntas; posa para fotografias. O êxito foi público e a humilhação... a maior da sua vida.
No voo de regresso, sente nojo e desprezo por si próprio.
Três: No carro
Em vez de o matarem, permitiram-lhe viver e, permitindo-lhe viver, mataram-no. Era a derradeira, irrefutável ironia da sua vida: permitindo-lhe viver, mataram-no.
Estaline morre, mas o compositor perseguido, dominado pelo medo, atormentado e derrotado, continua a afundar-se no desespero. Em 1960, durante a presidência de Krushchev e depois de aderir ao partido, sentado no carro conduzido por um motorista, interroga-se:
Lenine achava a música deprimente.
Estaline pensava que entendia e apreciava a música.
Krushchev desprezava a música.
O que é pior para um compositor?
Tudo ficou por dizer. Acredite!
Não é fácil ler (nem escrever sobre) este romance de Julian Barnes, uma reflexão inteligente sobre a relação da arte com o poder. Mas é perfeito e eu recomendo-o.
Leia com tempo, sem ruído... vá lá, com um som musical muito suave...
O ruído do tempo, de Julian Barnes
Tradução de Helena Cardoso
Ed. Quetzal, 2016
197 págs.