Advertência:
(...)Ser-me-ia difícil negar um parentesco que talvez alguns insistam em reprovar-me. O meu herói parece-se terrivelmente com o vagabundo disposto a tudo, sem pátria e todavia infeliz, que, no dia 31 de Outubro de 1756, à meia-noite, se evadiu dos Piombi de Veneza servindo-se de uma escada de corda e trocou o território da República por Munique na companhia de um frade renegado chamada Bibi. Á laia de defesa, direi somente que não foi a vida mas o caráter romanesco do herói a interessar-me.
Foi por isso que me limitei a pedir de empréstimo às célebres Memórias a data e a circunstância da fuga. Tudo o mais que o leitor poderá ler neste romance não passa de fábula e invenção.
S.M.
Advertência lida, penetramos na história do Giacomo Casanova de Sándor Márai, que começa com a chegada do famoso sedutor a Bolzano, três dias após ter escapado dos Piombi, a sinistra prisão veneziana. Acompanha-o Balbi, o frade renegado, alcoólatra e bonacheirão, seu companheiro de fuga.
É um Giacomo andrajoso, sem bagagem (transporta consigo apenas um punhal) e sem dinheiro, que entra na Estalagem do Veado e pede dois quartos. Um Giacomo humilhado que se faz passar por um fidalgo de Veneza assaltado na fronteira.
Entretanto, a notícia da evasão espalhava-se e toda a gente se regozijava «ali estava alguém provando que um homem era mais forte do que o despotismo, mais forte do que os Piombi, do que os esbirros e ria a bandeiras despregadas». Até o papa, que o tinha condecorado com uma ordem pontifícia, ria às gargalhadas. Até o rei se ria.
Ao escapar aos muros com um metro de espessura, ele deixara com um nariz de palmo e meio Suas Excelências, os terríveis senhores da Inquisição e, agora, tinha no seu encalço os polícias, os juízes, os esbirros e os espiões: porque não há nada mais perigoso do que um homem que não é capaz de se submeter à tirania.
À noite, dois polícias entram na estalagem, interrogam o estalajadeiro e ordenam-lhe : Queremos estar a par de tudo o que ele diga. Vigia-o bem. Recebe cartas, e de quem? Manda cartas, e a quem? Vigia-lhe todos os gestos.
É Teresa, a criadita de 16 anos, quem fica a vigiá-lo pelo buraco da fechadura. Ordens do patrão: toma cuidado com a tua virgindade e vigia-o. Hum! Hum!
Mas afinal, porque está Giacomo em Bolzano?
Porque em Bolzano vive Francesca, a única mulher que amou e perdeu em duelo para o temível e poderoso Conde de Palma. O conde poupou-lhe a vida, com a condição de não voltar a procurá-la. Ele cumpriu durante cinco anos, mas agora, a caminho do exílio em Munique, quer vê-la pela última vez. Sabe que não será fácil pois a adolescente é agora mulher do ainda temível conde de Palma.
Conseguirá? Talvez sim. Talvez não.
Adiante. Depois de dezasseis meses detido nos Piombi e três dias fechado no quarto (nem sempre sozinho…), Giacomo, o sedutor que se quer tornar escritor, “acorda” para a vida. Começa por pedir dinheiro a um velho amigo. A seguir, chama um barbeiro. A seguir manda fazer roupa condizente com a sua pretensa condição de fidalgo. A seguir… espera, pois estar à espera é viver.
Ao oitavo dia, Giacomo ouve um trenó parar à porta da estalagem e, logo depois, uma voz de homem, conhecida, velha, quase suplicante, diz à porta do seu quarto: «Tenho de falar contigo, Giacomo.» E entra.
- Prometi-te simplesmente matar-te se alguma vez voltasses, se voltasses a rondar-nos e a levantar os olhos para a condessa (…) as ameaças deixaram de ter cabimento (…) já não sinto vontade de atacar: a agressão nada resolve entre os homens (…) Vim com outra arma, Giacomo.
- Que arma?
- A arma da razão.
É longa a conversa. No fim, o conde faz-lhe uma proposta perversa e um convite surpreendente: Esta noite irás a nossa casa porque Francesca sente que tem de te ver! Apareces disfarçado e mascarado como os demais. Depois, quando a tiveres reconhecido, rapta-a, trá-la para aqui e realiza uma obra-prima! (…) Os segredos da tua arte não me interessam. É preciso que ela passe por ti, mas de modo a regressar para mim de manhã…
O conde sai e pouco depois Giacomo ouve uma voz de mulher, conhecida e bela, dizer do outro lado da porta: - Sou eu, Giacomo (...) tenho de te ver. E entra.
Estas duas conversas em Bolzano são, na verdade, dois monólogos (o do conde talvez demasiado extenso) sobre a paixão amorosa, o desejo, a indiferença, a vida, a velhice, a morte.
A história termina com Giacomo Casanova no quarto, já as velas tinham ardido até ao fim (lembra alguma coisa, não?), a ditar a Balbi uma carta para o conde de Palma com a resposta à proposta que ele lhe fez e um inesperado pedido. Qual? Não digo!
No grande duelo da vida, e até nos momentos decisivos, só as armas da cortesia são permitidas.
Romance soberbo.
O belíssimo monólogo do conde de Palma (páginas 141 a 193) é para ler e reler, e reler…
A conversa de Bolzano, de Sándor Márai
Tradução de Miguel Serras Pereira
Ed. D. Quixote, 2014
255 págs.