13 novembro, 2016

"A gaivota" - Sándor Márai


As recordações pesam muito. É uma pena.
Ele é um alto funcionário ministerial, húngaro, de quarenta e cinco anos, culto, sensato, honrado e solitário.
Sentado à secretária, escrupulosamente arrumada, olha o documento que acabou de redigir e, com um lápis roxo, escreve na margem da folha: «Estritamente confidencial».
Daí a pouco seria passado a limpo pela sua assistente, metido num envelope e levado ao ministro. Tudo feito de forma estrita e confidencial. Depois, seria impresso com tinta negra, pelas rotativas das grandes máquinas de impressão, declamado na rádio, lido por milhares e milhares de pessoas e… o coração da nação começaria a bater.
Mas o que era aquilo que tinha acabado de fazer?
Era um despacho oficial de enorme significado, que iria afectar a vida de milhões de pessoas.
Sentado à secretária, na grande sala ovalada, ele tapa a cara com as mãos trémulas. Pensa na guerra e tenta imaginar o que essa palavra, na realidade, vai significar no dia seguinte, ou daí a um ano… pensa na sua própria guerra mundial, a sua própria história mundial. Sente-se estranhamente tranquilo.
Nessa noite… vai à Ópera. Vai-se vestir de gala e vai à Ópera…
Entretanto, no exterior, uma mulher jovem e bela sobe apressadamente as escadas do prédio. Vai ao seu encontro, mas ele ainda não o sabe. Também ela vai encontrar-se com um homem que nunca viu antes.
Quando ela entra no gabinete, ele levanta-se da secretária. Observam-se longamente.
«Tão pálido», pensou a mulher.
«Devo parecer pálido», pensou ele. Imóvel, com o cartão dela na mão, uma sensação de insegurança invade-lhe o corpo.
Esta mulher já nasceu e morreu uma vez.
Esta mulher já entrou, há cinco anos, no meu gabinete, exactamente da mesma maneira; media um metro e sessenta e oito e pesava cinquenta e dois quilos. Queria que morrêssemos juntos, mas eu não podia cumprir o seu desejo.
Morreu sozinha… enterrada bem fundo na sua campa. Mas eis que ela volta.
Assombrado, manda sentar a mulher desconhecida e inicia um interrogatório. Ela responde educadamente. Chama-se Aino Laine «a única onda», é finlandesa, licenciada em inglês e francês, professora, vinte anos, alta, ossuda e loira. Solicita autorização de residência e procura um emprego na Hungria.
- Posso contar com a sua ajuda, senhor conselheiro?
- Estamos em guerra, não sabe?... Volte para a Finlândia…
Aino fala fluentemente húngaro e (apenas) a sua voz não lhe faz lembrar a voz da mulher morta.
Então, contrariando a honra e o decoro das suas funções, ele pergunta à mulher:
- Quer ir comigo à Ópera esta noite?
(A resposta dela vem logo a seguir… mas no livro.)
Ele amou uma única mulher: Ili, inteligente, bonita e saudável. Suicidou-se aos vinte e dois anos, com cianeto. Era química.
Nessa manhã, no ministério, encontrou-se com o duplicado de Ili.
À noite, frente ao espelho, penteia-se, observa o rosto pálido, marcado e descarnado, e reflecte:
O que esperaste da primeira, e o que esperas agora da sua cópia? A felicidade? A felicidade não existe, meu pobre rapaz. No fundo da existência apenas há o tédio e a fraqueza. Deus, ao criar o mundo, não conseguiu construir melhor.
Depois, sai de casa. Encaminha-se para a Ópera. Está um tudo-nada atrasado. Estará «a única onda» à sua espera?
Há noites em que não importa o que se passa…

O que importa é ler. Ler, de dia ou de noite, escritores como Sándor Márai (1900-1989), senhor de uma escrita incomparável, inteligente, tocante, perfeita.
A gaivota”, mesmo não sendo o que de melhor já li dele, é… um assombro.
Encontrámo-nos e despedimo-nos…

A gaivota, de Sándor Márai
Tradução de Piroska Felkai
Ed. D. Quixote, 2016
158 págs.

4 comentários:

  1. Gosto mesmo desse escritor que comprei num dos meus feelings de acaso.

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    1. Eu, como dizem os nossos irmãos(?) brasileiros: "amo de paixão".
      Os seus romances são encantatórios, pronto!

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  2. Eu adoro Sándor Márai, cuja leitura iniciei, como a maioria das pessoas, com o 'As Velas Ardem até ao Fim" (e que permanece o meu favorito).

    Se gostam dele, leiam também Kundera - não necessariamente irmãos e não sendo compatriotas, partilham uma mesma época (OK, com 29 anos de diferença), regime e estilo.

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    1. Eu gostei de "As velas ardem até o fim" mas "A herança de Eszter" e "A mulher certa" fascinaram-me. Recomendo a leitura.
      De Kundera li pouco.

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