29 julho, 2016

"Histórias curtas" - Rubem Fonseca

Eu sou ladrão.
Como é que o sujeito se torna ladrão? A polícia sabe? Não, não sabe. O advogado criminalista sabe? Não, não sabe. O psicólogo sabe? Não, não sabe. O psiquiatra sabe? Não, não sabe. O Psicanalista sabe? Não, não sabe. (…)
(Excerto do conto "Um bom trabalho")

Antes de comprar este livro nada conhecia de Rubem Fonseca. (Grande falha minha, eu sei, nada de críticas.) 
Então, por que razão o comprei?
Confesso que a capa dourada me lembrou o sol de verão; confesso que histórias curtas são o melhor que há para ler esparramada numa toalha de praia; confesso que sou louquinha por banhos de mar - em água fria, morna ou quente, no mar eu entro sempre (mas fujo apavorada da ondulação), depois, ou saio rapidamente ou por lá fico “a salgar” de satisfação; confesso que na praia a minha rotina é: caminhar, banho de mar, ler, banho de mar, ler….;  confesso que enquanto durou a leitura deste livro essa rotina passou a ser: caminhar, banho de mar, ler, ler, ler, banho de mar, ler, ler, ler… e rir muito!
Trata-se de uma colectânea com 38 histórias curtas (algumas curtíssimas) brilhantes, irreverentes, destrambelhadas, loucas e divertidas, que, agora muita atenção, de forma rigorosa, implacável mas ao mesmo tempo delicada, relatam temas seríssimos como: velhice, degeneração da mente, preconceito racial, violência urbana, luxúria, sexo, erotismo, prostituição, obesidade, desumanidade, riqueza, miséria, etc., etc.,

"CEM ANOS"
Quem disse a Manuel que ele naquele dia fazia cem anos foi a sua vizinha, dona Adelina.
«Como você sabe?, perguntou Manuel.
«Sei a idade de todos os vizinhos. Quer que eu lhe diga?»
Manuel foi até o cubículo da casa que ele chamava de escritório, fuçou a papelada e achou a certidão. Dona Adelina estava certa. Ele fazia cem anos naquele dia.
«Não vai comemorar? Cem anos merecem uma comemoração», disse dona Adelina, quando se encontraram novamente.
«Comemorar como? Todos os meus parentes e amigos morreram.»
Manuel morava na mesma casa há muitos anos. Os móveis eram os mesmos, os livros eram os mesmos, só as toalhas, os lençóis e as cuecas não eram muito velhos. Até o clister era o mesmo. Antigamente as coisas duravam, pensou Manuel, agora todo o ano sai uma nova versão do mesmo produto, dizem que esse é um método de comércio denominado obsolescência planejada. Então, subitamente lembrou que clister era uma palavra que vinha do grego, significando seringa.
Ele sofria de prisão de ventre e fazia clister diariamente. O seu aparelho era uma espécie de jarra de vidro, com uma pequena torneira que abria e fechava, na qual era colocado um tubo comprido de borracha com um recipiente na ponta. Ele enchia a jarra com um líquido especial e deitado sobre o lado esquerdo introduzia o recipiente no ânus e abria a torneira da jarra, permitindo que o líquido entrasse nos seus intestinos, até sentir vontade de evacuar.
Mas essa não pode ser a maneira de comemorar os meus cem anos, eu faço isso há dezenas de dezenas de anos, pensou.
Cem anos não se comemoram. Cem anos de quê? A vida é um sofrimento contínuo, o corpo sofre, a mente sofre, doenças - e ele pensou em todas as doenças que existiam, eram tantas que davam para encher um livro de quinhentas páginas. Era isso que ele ia comemorar?
Então teve uma ideia. A melhor maneira de comemorar cem anos é morrendo na cama sem incomodar ninguém.
«Vou deitar e morrer», decidiu.
Deitou na cama e morreu. Mas antes teve a consciência de uma sensação de bem-estar. Ele estava feliz."

«Tudo o que é bom é ilegal, imoral ou engorda.»
Bolas!

Histórias curtas, de Rubem Fonseca
Sextante Editora, 2016
163 págs.

26 julho, 2016

É a escuridão, não é?


"A memória é como o chão de uma casa, de uma casa de madeira, há tábuas que vão ficando podres, embora já estejam a esboroar-se parecem iguais às outras todas, está-se seguro, continua-se a andar, mas, de repente, há qualquer coisa que desaparece, desaparece e já não se pode alcançá-la, há uma tábua que cede e todas as coisas que estavam à sua volta são como que sorvidas. Quanto mais os anos vão passando, mais os abismos aumentam, só há turbilhões a girar, uma pessoa anda cada vez com mais cautela por entre esses sorvedouros, basta o mais pequeno erro para que o pouco que ainda conserva vá parar lá dentro.
É a escuridão, não é? É a escuridão, mas continua-se a viver, e o mais tremendo, o que mais enraivece, é que o coração e a barriga continuam a funcionar, podendo continuar a funcionar durante anos e anos, quando uma pessoa já deixou de existir.”


Tirei daqui: “Para uma voz só”, de Susanna Tamaro, Ed. Presença, 1997
Foto da net.

19 julho, 2016

O que é uma mulher?


Eis a definição que encontrei numa das páginas do romance “As terras do risco” (1994), de Agustina Bessa-Luís:

“- O que é uma mulher?- disse Baltazar (…) Confesso que as vejo sempre como uma coisa de pouco valor, que nunca nos serve o bastante e povoa a nossa solidão e às vezes a degrada. Não sei de pior companhia do que a duma mulher. Faz barulho com a loiça, bate com as portas, arrasta as cadeiras, queixa-se o dia inteiro, encontra todas as maneiras de ser desagradável, tem um cheiro horrível às vezes, e quer que a gente lhe diga que a ama. Quer ser notada em casa e na rua, usa roupas impróprias no amor e no trabalho. Só aqueles brincos enormes lhe dão um ar arrepiante. São tão ignorantes! Mesmo quando fazem o liceu e um curso superior, ficam ignorantes. Não são capazes de ideologia nem de utopia nenhuma. Quanto a construírem o mundo, limitam-se a limpar-lhe o pó e a fazer constar que isso é uma regra de oiro. Eu não digo que não tenham jeito para governar, mas o que eu digo é que se enchem de complexos de culpa e fazem do governo uma atitude e não um ofício. Não sei como as hei-de tratar. Já não lhes podemos bater nem fazer-lhes filhos; nem pedir-lhes que nos façam a cama e a sopa. Respondem: “Basta de autoritarismo militar, de faxina, de continência, de galões.” São mais brutais e menos guerreiras. Querem convencer e não agradar. Como é possível?"


É fértil e incontrolável a imaginação de Agustina.
Eu, pasmei!!!

16 julho, 2016

"Um postal de Detroit" - João Ricardo Pedro


Ó estimado médico, repara no chão repleto de frutos podres!
No dia 11 de Setembro de 1985, pelas 18 horas e 37 minutos, dois comboios colidiram frontalmente no troço que liga a estação de Nelas ao apeadeiro de Alcafache - o Sud Express que rumava a Paris com o Regional proveniente da Guarda.
A colisão, seguida de incêndio, fez 49 mortos (alguns dos quais nunca chegaram a ser identificados) e 64 desaparecidos.
Este acidente, o pior da história dos Caminhos de Ferro Portugueses, é o ponto de partida do segundo romance de João Ricardo Pais, autor do celebrado “O teu rosto será o último”, Prémio Leya 2011.
Porquê esta escolha? Ele explica, antes do início do romance:
“Entre os passageiros do Sud Express, encontravam-se duas pessoas minhas conhecidas – uma sobreviveu, a outra não. Em 1985, nada as unia, para além da circunstância de viajarem no mesmo comboio, com destino a Paris.
Por mais que se procure, nenhuma delas poderá se encontrada nas páginas deste livro, mas as páginas deste livro não existiriam sem elas.
Quanto ao resto, é tudo inventado.”
Depois, avança para a primeira das duas partes/períodos do romance (1985-1986 e 1992-1993), com um telefonema da polícia a informar os familiares de Marta - jovem de dezanove anos, estudante de Belas-Artes, excelente nadadora, bela e feliz - que tinha sido encontrada a sua mochila nos destroços do Sud Express. Apenas isso, a sua mochila. Não havia corpo. Havia apenas dúvidas.
Por que motivo se encontrava Marta a bordo de um comboio com destino a Paris-Austerlitz? E por que razão apanhara esse comboio na estação de Porto-Campanhã, ou na estação de Aveiro, ou na estação de Coimbra-B, ou na estação de Pampilhosa, ou na estação de Mortágua, ou na estação de Santa Comba Dão, ou na estação de Nelas, quando, no mesmo dia, um outro comboio internacional com destino e Paris-Austerlitz partira da estacão de Lisboa-Santa Apolónia, bem mais próxima da casa onde estava a passar férias?
Estarão as respostas no quarto de Marta? Nos cadernos de desenho, verdadeiros diários de um quotidiano sórdido e maravilhoso? Na fotografia de Marta abraçada a uma amiga na Praia da Zambujeira do Mar? Nos muitos desenhos de uma mulher sem rosto? No postal guardado da cidade de Detroit? Na casa do Alentejo onde passava férias com Sofia, a colega de Belas-Artes encontrada dentro da banheira com os pulsos cortados, no mesmo dia do acidente ferroviário?
… trinta anos depois, seis internamentos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, sessões de psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choque elétricos, dou por mim deitado na cama, de olhos pregados no tecto, a pensar nesses dois pobres maquinistas, frente a frente, sem tempo para uma travagem de emergência… João, o irmão mais novo, recria os passos de Marta antes do acidente e, numa narrativa brutal, dolorida, delirante, desvenda tudo sobre ela, sobre os pais e sobre ele próprio – o mais excluído dos seus cadernos. E o que eu me esforcei por existir! O que eu me esforcei por merecer a atenção e Marta…

Postal de Detroit” conta-nos uma história bem engendrada, inteligente, bem escrita, sobre a “ténue fronteira que existe entre sanidade e loucura e os laços perturbadores que tantas vezes unem a vida à arte”. Contudo, a estrutura narrativa com avanços e recuos, o excesso de personagens secundárias e páginas de texto desinteressante, parecendo desgarrado da trama, tornam a sua leitura maçadora. Nem as muitas referências ao Sporting Clube de Portugal (o meu clube) me motivaram, e lá fui arrastando a leitura até ao fim. Lamento!
I never saw de Sea, escreveu Marta no seu último caderno.
O que escreveu mais?

Um postal de Detroit, de João Ricardo Pedro
Ed. D. Quixote, 2016-07-16
223 págs.

14 julho, 2016

Sabe-se lá...


“Sabe-se lá porque é que, com o passar dos anos, se chora cada vez mais, começa-se e não se consegue parar, continua-se durante horas e horas, sem nada que console. O coração está mais fraco, mais exposto, as pálpebras amolecem. Só se pára no sono, quando se adormece. Foi o que me aconteceu ontem.”


Tirei daqui: “Para uma voz só”, de Susanna Tamaro, Ed. Presença, 1997
Foto da net.

05 julho, 2016

17º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa

172-(1929?)
“O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece.”

“Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.”

178-(1929?)
“Cada vez que o meu propósito se ergueu, por influência dos meus sonhos, acima do nível quotidiano da minha vida, e um momento me senti alto, como a criança num baloiço, cada vez dessas tive que descer como ela ao jardim municipal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra nem espada que houvesse força para desembainhar.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


01 julho, 2016

"As terras do risco" - Agustina Bessa-luís


Arrábida quer dizer lugar de oração.
Aí se encontram as Terras de Risco.

“O que trazia o prof. Fabre d’Oliver à Serra da Arrábida com a sua bela esposa de enigmáticos olhos permanentemente sem segredos, era a curiosidade. A curiosidade era o vício do professor Fabre. Possivelmente, os outros vícios são seus primos carnais. O professor Fabre tivera contacto com um estudioso de História que lhe garantira que em Portugal tudo estava por descobrir: tesouros escondidos e espécies raras. Inclusive uma espécie de gato selvagem que dá pelo nome de Khoi, semelhante ao gato persa. Mas o que verdadeiramente o atraíra fora o instrumentos em latim do contrato de casamento de Isabel de Avis como duque de Borgonha. Que no contrato de casamento aparecessem três testemunhas que eram mercadores florentinos, isso também nada tinha de estranho, posto que os delegados banqueiros de Florença nada mais faziam ali do que garantir o dote da noiva. Mas que um deles se chamasse Heitor Sequespee, isso já era mais impressionante e digno de atenção. Como era que durante quinhentos anos ninguém reparara naquilo? O professor Fabre teve um ataque de curiosidade tão intenso que lhe caiu uma porção de cabelo e engordou seis quilos.”

Foi na minha varanda solarenga virada para o mar, que “penetrei” na densa, grandiosa, bela, labiríntica e perigosa Arrábida, lugar central da acção deste “romance de risco”.
Pensava eu que sentir o sol e mirar o mar facilitaria a leitura da escrita densa, excessiva e igualmente labiríntica de Agustina. Enganei-me!
Enganei-me e rapidamente deixei de querer saber se o Professor Martin, na companhia de Jeanne Précieuse a sua sedutora mulher linda de morrer, encontrou a chave do enigma que o levou a subir a Serra da Arrábida num velho táxi verde e preto.
Mas não desisti.
Mesmo que Agustina diga que não devemos acreditar em tudo o que nos dizem, sem cinismo prometo voltar a “As Terras do risco”. Lá para o inverno…
Perdoem-me os seus seguidores. São coisas que acontecem.
Entretanto, fico na expectativa que alguém me esclareça se a curiosidade faz mesmo cair o cabelo e engorda.
Valha-me Deus!

As terras do risco, de Agustina Bessa- Luís
Guimarães Ed., 1994
284 págs.