31 maio, 2016

"Poesia e Prosa" - Eugénio de Andrade


ESCRITO NO MURO
Procura a maravilha.

Onde a luz coalha
e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.

Onde a boca sabe
a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta
à língua do vento.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

DO OUTRO LADO
Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direcção das nascentes.

Eugénio de Andrade (1923-2005), in "Poesia e Prosa (1940-1986) – I vol.", Círculo de Leitores, 1987

29 maio, 2016

"Seda" - Alessandro Baricco

Hervé Joncour tinha 32 anos.
Comprava e vendia.
Bichos-da-seda.

Lavilledieu era o nome da vila onde Hervé Joncour vivia.
Hélène o da sua mulher.
Não tinham filhos.

Hervé Joncour, para adquirir os ovos dos bichos-da-seda, deslocava-se para além do Mediterrâneo, à Síria e ao Egipto.
Todos os anos, no início de Janeiro, partia (…) Regressava no primeiro domingo de Abril, em regra a tempo para a Missa grande.
Trabalhava mais duas semanas para embalar os ovos e vendê-los.
O resto do ano, descansava.
- COMO É A ÁFRICA?, perguntavam-lhe.
- Cansada.

No início dos anos sessenta, a epidemia que tinha tornado inutilizados os ovos das criações europeias difundiu-se além-mar, alcançando a África.
Havia que ir ainda mais longe em busca dos melhores ovos.
Havia que atravessar o mundo e chegar ao Japão. Os japoneses produziam e vendiam a seda mais bonita do mundo - mas os ovos, esses não. Levá-los para fora da ilha era crime. Há duzentos anos isolada do resto do mundo, continuavam a proibir a entrada a estrangeiros.
Um dia segurara entre os dedos um véu tecido com fio de seda japonesa. Era como segurar entre os dedos o nada - dizia Baldabiou, o homem que colocou Lavilledieu no grupo dos principais criadores europeus de bichos-da-seda e de fiação de seda e que aliciara Hervé Joncour para o negócio da seda.
Hervé Joncour abandonou a carreira militar e tornou-se comprador e vendedor de ovos de bichos-da-seda. No início de cada ano partia à procura dos melhores. Cruzava mares e terras para os encontrar, escolhia-os, comprava-os, transportava-os para Lavilledieu, embalava-os e vendia-os às fiações locais. Ganhava muito dinheiro. 
- E onde fica, exactamente, esse Japão?
- Sempre em frente naquela direcção. Até ao fim do mundo.
A 6 de Outubro de 1861, Hervé Joncour partiu sozinho.
Levava consigo oitenta mil francos de ouro e os nomes de três homens: um chinês, um holandês e um japonês.
Em Shirakawa negociou a aquisição de ovos e conheceu o poderoso e inacessível Hara Kei, senhor de uma impressionante colecção de aves exóticas e de uma mulher misteriosa, uma rapariguinha cujos olhos não tinham um corte oriental. 
Hervé Joncour regressou a Lavilledieu no primeiro domingo de Abril. Escondidos na bagagem, levava milhares de ovos de bichos-da-seda, e no coração uns olhos que o olhavam com uma intensidade desconcertante.
Nesse ano a produção de seda foi extraordinária.
Hervé Joncour enriqueceu. Completou 33 anos a 4 de Setembro de 1862. A sua vida chovia, diante dos seus olhos, espectáculo sereno.
No primeiro dia de Outubro do ano seguinte, Hervé Joncour voltou ao Japão. Voltou a ver a rapariguinha cujos olhos não tinham um corte oriental. Mil vezes procurou os olhos dela, mil vezes ela encontrou os seus.
Regressou a Lavilledieu com ovos, e uma pequena folha de papel com ideogramas desenhados um debaixo do outro, a tinta preta.
Pagou a Madame Blanche, a japonesa dona de um bordel, para saber o que estava escrito na folhinha.
- Voltai ou morrerei.
10 de Outubro de 1864.
As notícias de uma guerra civil no Japão não demovem Hervé Joncour de fazer a sua quarta, e última, viagem.
Encontrou destruição e terra queimada. Nada soube sobre a rapariguinha cujos olhos não tinham um corte oriental.
De repente viu o que julgava invisível.
O fim do mundo.
A viagem de regresso foi demorada.
Hervé Joncour chegou a Lavilledieu a 6 de Maio de 1865, com milhões de larvas. Mortas.
Seis meses depois, recebeu pelo correio um envelope que tinha dentro sete folhas dobradas cheias de ideogramas japoneses. Guardo-as.
No inverno de 1874 Hélène adoeceu e morreu no início de Março.
Dois meses depois, Hervé Joncour quis saber o que diziam as sete folhas que recebeu pelo correio.
Madame Blanche lia. Ele escutava.
Uma belíssima confissão de amor.
Escrita por Madame Blance. Ditada por uma mulher com voz belíssima. De veludo.
Mas isso, Hervé Joncour só soube muitos anos mais tarde.
Hervé Joncour viveu ainda vinte e três anos.
Sempre em Lavilledieu. Sempre na casa que partilhou com a sua amada.
Quando a solidão lhe apertava o coração, subia ao cemitério, para falar com Héléne,
Hélene, a mulher com voz de veludo.

Seda é um delicado relato sobre o amor.
Uma provável história de amor, tecida com fios de seda pura.
Enigmática, melancólica, contida de gestos e palavras.
… a vida, às vezes, toma um rumo tal que não resta mais nada para dizer.

(Romance oferecido pela minha filhota em Setembro de 2008, esteve até agora "perdido" numa pilha de livros. Lamentavelmente!)

Seda, de Alessandro Baricco
Tradução de Simonetta Neto
Ed. Dom Quixote, 2008
123 págs.

24 maio, 2016

O que está a pensar?


“Gostaria de começar por pedir-lhe que preste atenção ao que pensa ao longo do dia. Determine a qualidade dos seus pensamentos. Costuma ocupar o cérebro com pensamentos destrutivos, como o ódio, a culpa, a ira ou a inveja? Elimine-os completamente e substitua-os por pensamentos positivos.
Se não se libertar dos pensamentos negativos imediatamente, eles acabarão por crescer desproporcionalmente. Ouça-se a si mesmo quando pensa; ficará surpreendido com a sua tendência para pensar negativamente sempre que ocorre uma determinada situação. Esforce-se por nunca ter um único pensamento negativo; assim que se aperceber que está a entrar nesse caminho diga «ALTO!» para si mesmo e esforce-se por pensar positivamente.

É a qualidade dos nossos pensamentos que determina a qualidade da nossa vida.
Ser positivo significa preocupar-se menos e apreciar mais a vida, preferir ver o lado bom das coisas em vez de encher a cabeça de problemas, escolher a felicidade em vez da infelicidade. É seu dever sentir-se bem consigo mesmo.
Se não estiver satisfeito não pode dar satisfação a mais ninguém, não pode ajudar os outros, e não terá êxito naquilo que fizer. 

Poderá ser-lhe útil escrever os seus pensamentos positivos num pedaço de papel e lê-lo várias vezes ao longo do dia. Depois de os ler várias vezes conhecê-los-á de cor; continue a repeti-los até ficarem implantados no seu subconsciente. (…)
Comece hoje.”

Papel... caneta...
Uau! É hoje que a minha vida vai mudar para melhor. 
Estou confiante!!

Tirei daqui: “Pensamento positivo”, de Vera Peiffer, Ed. Presença, 1996
Foto da net.

21 maio, 2016

"Vale Abraão" - Agustina Bessa-LuÍs

O que era o amor? Ema achava-o um derivativo duma vocação profunda e inflexível; um luxo que simboliza paisagem que a ninguém é dado ver; sonhos, apetites, manias que nada mais são do que o desejo de ser uma outra pessoa, de arrancar desses símbolos do corpo (o sexo e os olhos que primeiro pecam) a natureza da pessoa, em toda a sua difusa corrente de movimentos.(...)
Os amantes (…) não lhe serviam senão para através deles consagrar o pecado. Mas só amando se consagra alguma cosa; senão era apenas o silêncio.
Sinopse:
“A recriação duma Bovary, destinada a servir de guião para um filme de Manuel de Oliveira, trouxe à Autora a necessidade de descobrir a natureza flaubertiana que concebeu Ema e a tomou como seu espelho. “A Bovary sou eu” – disse Gustave Flaubert, no auge da incriminação que pesou sobre a sua vida de romancista. De facto, Ema é Flaubert, e o romance é uma história de paixão que tem como adversária a mediocridade. Chabrol soube tocar essa realidade que ofusca todas as outras, ao dizer: “O ser humano é estúpido. O que salva Ema é que ela se bate.”
Ema bate-se contra a rede de pequenas e formidáveis misérias que se apertam em volta dela. Heroína provinciana das insatisfações típicas do ser humano…”
Sem dúvida que a sinopse desperta curiosidade, mas… lamento, ter de dizer que ao reler “Vale Abraão” voltei a sentir enfado e desilusão. Nem a digna descrição da paisagem serena e bucólica das quintas da margem direita do Douro vinhateiro (lugar onde tudo acontece) evitou o meu drama de virar a página ou fechar o livro.
É claro que elogio a excelência da escrita e aplaudo efusivamente a caracterização física e psicológica das personagens do romance, particularmente da mulher que é o centro vivo de uma história, mas não heroína dela…
Ema, assim se chama a protagonista, é uma mulher provinciana, inteligente, bela, sedutora, ambiciosa, divertida, casada com Carlos, que não ama, um médico paciente, um santo, que tudo lhe desculpa, por considerar que ela sofre de uma depressão singular e incurável devido ao efeito da sua manqueira – um defeito na perna esquerda, desde os cinco anos, mãe de duas filhas,que ignora.
Mulher adúltera, tem vários amantes ao mesmo tempo. Não os ama, nem quer comprometer-se com nenhum. “Usa-os” para poder frequentar uma sociedade que lhe está vedada.
Desencaminhada, ou perdida, a sua vida é um constante vaivém de corridas no seu carrinho amarelo descapotável, festas, bailes, viagens. Adora comprar coisas, fazer dívidas, fumar até um pouco de erva e beber às vezes até perder toda a noção da decência.
Grande personagem esta Ema, a Bovarinha.
Agustina não poupa adjectivos para a caracterizar: caprichosa, insatisfeita, interesseira, orgulhosa, invejosa, maldosa, viril, poderosa, vingativa, cabeça louca, provinciana ensaboada, desenganadora, dona de uma personalidade malévola, mentirosa sem escrúpulos, vadia sem despudor, indigna sem preâmbulo, fútil sem vaidade, etc., etc..
Narrado no último capítulo do livro - “UM RIO CHAMA OUTRO RIO”, é triste o fim da menina que cresceu sem mãe numa liberdade demasiada, da jovem fútil que engana o marido e os amantes, da mulher solitária, doente, tristonha e sem alma. 

Quando a perfeição é monótona e repetitiva, cansa!

Vale Abraão, de Agustina Bessa-Luís
Guimarães Ed., 1991
239 págs.

17 maio, 2016

É proibido chorar...


“As caras das mulheres, quando choram de verdade, tornam-se intensas e contêm uma beleza aterradora como as esculturas de Gaudi. Deve ser por isso que assusta tanto os homens. Qualquer homem suporta estoicamente que o queimem com um ferro em brasa, que lhe arranquem as unhas ou o esbofeteiem, mas nenhum consegue suportar a visão de uma mulher a chorar. E deve ser por isso, porque o rosto de uma mulher quando chora e soluça se torna poderoso e terrível, libertando todo o género de sentimentos e emoções.
Os homens pensam que choramos contra eles. E aí o instinto não os engana. Eles fazem-nos chorar, provocam o nosso pranto em cerca de noventa e nove por cento dos casos. Choramos de tristeza, de solidão, de medo, mas também de raiva, de impotência, de indignação. E fazemo-lo, igualmente, em um por cento porque temos pena de nós – contemplamo-nos de fora e temos pena de nós. Somos tão estúpidas, tão parvas, tão emprestáveis, tão feias, tão anormais e tão complexadas que temos pena de nós!”

Mulher, acredita em ti!

Tirei daqui: “Como ser mulher e conseguir sobreviver”, de Carmen Rico-Godoy, Ed.Terramar, 1990
Foto da net.

13 maio, 2016

"Arrume a sua casa - Arrume a sua vida" - Marie Kondo


Colocar a casa em ordem é a magia que cria uma vida vibrante e feliz
Dobrar, engavetar ou pendurar roupa é difícil, mas eu safo-me. Mais dobra, menos dobra, e já está!
Ordenar livros e papéis é difícil, mas eu safo-me. Tira daqui, põe ali. Tira dali, põe aqui. Está feito!
Encontrar o lugar certo para “resmas” de objectos decorativos é extenuante, mas eu safo-me. Mudo da sala para a salinha, da salinha para o quarto… “et voilá”!
Arrumar artigos de maquilhagem é complicado, mas eu safo-me. Em caixinhas, cestos, frascos e gavetas “escondo” toneladas de cremes, máscaras, lápis, sombras, blushes, batons, etc.. Escondido fica também o prazo de validade de muitos artigos. Mal!
Guardar sapatos é complicadíssimo, portanto, sobre sapatos nada digo…
Sou ou não sou uma pessoa organizada? Segundo o método de Marie Kondo, a japonesa especialista em arrumações: NÃO!
Eu, que julgava saber tudo sobre dobrar roupa, ordenar livros e papéis, arrumar coisas e mais coisas...enganei-me! E corei de vergonha. 
Bem, o meu problema não é arrumar, o meu problema é o apego excessivo pelas coisas. Todas!
Mas agora isso vai mudar. Este livrinho “arrumadinho”, inspirador e encantador ensina a “deitar fora” tudo o que está a mais na nossa vida. TUDO! E eu, vou seguir rigorosamente o método KonMari e organizar a minha casa, para iluminar a minha vida.
Será possível?! Marie Kondo diz que sim, que é esse o poder mágico da arrumação.

Ufa! Ler este livro cansou-me mas aprendi muito. Particularmente, a deitar fora o que não me faz feliz. Não é fácil, mas é gratificante. A minha casa tem agora MENOS tralha acumulada, MAIS espaço, MAIS luz.
Por MAIS brilho na minha vida…aguardo pacientemente!
Para já, estou programada: deitar fora /arrumar; deitar fora /arrumar…
Arrumar traz resultado visíveis. Arrumar nunca mente. 
Arrumar a casa é divertido!
Hum! Hum!

Arrume a sua casa – Arrume a sua vida, de Marie Kondo
Tradução de Ana Lourenço
Ed. Pergaminho, 2015
157 págs.

10 maio, 2016

"Instruções para salvar o mundo" - Rosa Montero


Porque gostei do que li, volto ao amor de Rita e Matías:

“Durante os quase vinte e oito anos que viveram juntos, nunca disseram um ao outro uma palavra imperdoável. Claro que discutiram e se aborreceram inúmeras vezes. Tiveram temporadas melhores e piores e Rita podia ser desesperante – era amiga de discutir, mandona e teimosa. Mas não conseguiam ficar zangados durante muito tempo porque, passados alguns minutos, um deles começava a rir-se, contagiando e amansando o outro com as suas gargalhadas. E, de qualquer forma, nunca dispararam sobre o outro frases venenosas, nunca recorreram a esse chumbo verbal que alguns casais utilizam para atingir as partes fracas do outro e magoá-lo, a esses vocábulos que são tão explosivos como balas para abater elefantes e que não se utilizam para discutir nenhuma questão, mas para ferir. E, às vezes, para matar.”

Para reflectir e mudar comportamentos.
Perfeito!

06 maio, 2016

"Instruções para salvar o mundo" - Rosa Montero

… às vezes a vida aperta tanto que não deixa lugar para respirar.

A Humanidade divide-se entre aqueles que gostam de se meter na cama à noite e aqueles a quem ir dormir desassossega.
Começa assim este romance de Rosa Montero, uma história de esperança, fascinante, estranha, hipnotizante.
De entre as muitas e boas razões para a ler destaco quatro: a trama surpreendente e hipnótica; a escrita fluída, acessível e brilhante que nos prende e comove; a mistura rigorosa de humor, horror, ironia; a perfeita definição física e psicológica de quatro sobreviventes, personagens inesquecíveis cujos destinam se cruzam num cenário de escuridão, horror, catástrofe, esperança.
Os quatro têm um pesadelo recorrente: matam alguém mas não conseguem ver a vítima e quando acordam, aterrorizados, o sentimento de culpa continua colado às pálpebras, à memória, e ao coração durante muito tempo.
Os quatro frequentam o Oasis, um bar cuja clientela é constituída por desenraizados, noctívagos, putas e taxistas.
Eles são:
- Matías, 45 anos, viúvo às voltas com a dor pela perda de Rita (o romance começa com o seu funeral), é o taxista mais calado do planeta. Antes trabalhou numa empresa de mudanças, antes foi trolha e muito antes, esteve num reformatório por roubar rádios de automóveis. Quando de lá saiu, a vizinha Rita, professora, decidiu salvá-lo de si próprio. Ele tinha dezassete anos e ela acabara de fazer trinta. Amaram-se e viveram juntos vinte e oito anos. Com ela descobriu o cinema, a música clássica, a leitura. Continuou a odiar futebol. Por tudo isso, quando Rita adoeceu e faleceu, Matías reivindicou a morte dela toda para ele, tal como anteriormente tinha gozado da sua vida.
Voltará a ser feliz…
- Daniel Ortiz, 45 anos, médico, quinze anos de um casamento de mágoa e rancor, sem filhos, sem sucesso profissional, sem amigos, é viciado em jogos de computador e fascinado pelo mundo virtual de Second Life. Mesmo sabendo que é uma perversão parva, é para lá que “corre” logo que termina os turnos nos Serviços de Urgência do hospital. Às vezes parecia-lhe que a vida real era menos real que Second Life.
Certa noite, no hospital trata uma jovem negra cujo sorriso luminoso o faz sentir-se em paz consigo próprio. Será ela capaz de o ajudar a encontrar um sentido para a vida, a abandonar a mulher inclemente que o despreza, a sarar a dor que a tristeza lhe provoca?
Apesar da vergonha atroz vai procurá-la…
- Fatma, uma prostituta negra, bela e frágil. É a princesa do Oasis, mal tratada por Draco o proxeneta dono do bar que a conseguiu legalizar, arranjando-lhe os papéis no mercado negro. Fatma, a puta principesca desenraizada e solitária tem uma única amiga: Bigga, uma lagartixa protectora.
Dois homens irão mudar a sua vida…
- Cérebro, uma velha cientista, solitária e demasiado dada à bebida, é a freguesa mais fiel do Oasis. Chega ao início da noite, senta-se sempre no mesmo tamborete, bebe pausadamente vinho tinto e sai ao amanhecer sem dar sinais de estar embriagada.
A noite assustava-a e não se deitava porque se sentia tão só na cama como um morto na sua tumba.
No Oasis, o álcool e o barulho protegem-na. Ali, ninguém sabia do seu passado, dos seus amores proibidos. Ali, ninguém se atrevia a falar com ela e ela também não parecia importar-se com ninguém. Até um dia…

Que Rosa Montero é uma extraordinária contadora de histórias, eu já sabia.
Que se relem com redobrado gosto, fiquei a saber agora.
Esta é a história de uma longa noite. Tão longa que se prolongou durante vários meses.
Termina assim:
… a Humanidade divide-se entre aqueles que sabem amar e aqueles que não sabem.
Mas essa é outra história.
Leia (esta), por favor.

Instruções para salvar o mundo, de Rosa Montero
Tradução de Helena Pitta
Porto Ed., 2008
285 págs.

03 maio, 2016

15º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


159-(1918?)
Cada vez que viajo, viajo muito.”

166-(cerca de 13.1.1920)
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facilidade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque das coisas pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol, como não há de sofrer no escuro do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamento não é uma busca de felicidade, que não tenho alma para conseguir; nem de tranquilidade, que ninguém obtém senão quando nunca a perdeu, mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobre são-me, ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada, não quero nada, não sonho sequer, perdido num torpor de vegetal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da vida. Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada, o antessabor da morte e do apagamento."

Leia (tudo) e… deslumbre-se!

01 maio, 2016

Poema à Mãe


POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? –
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz::
    Era uma vez uma princesa
    no meio de um laranjal…

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe,
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Poema de Eugénio de Andrade (1923-2005), in "Poesia e Prosa (1940-1986) – I vol.", Ed. Círculo de Leitores, 1987
(foto da net)