31 dezembro, 2016

A todos... um EXCELENTE 2017!


“… faz a ti próprio a seguinte pergunta: «Que faria eu hoje, se este fosse o último dia da minha vida?» O truque é ir mesmo ao fundo da questão. Elabora uma lista mental de todas as coisas que farias, das pessoas a quem telefonarias e dos momentos que te dariam prazer. Imagina-te a fazer estas coisas com grande energia. Visualiza como é que tratarias a tua família e os teus amigos. Imagina inclusivamente como tratarias perfeitos desconhecidos, se hoje fosse o teu último dia à face da terra.
... quando vives cada dia como se fosse o último, a tua vida ganha proporções mágicas. Começa a viver cada dia como se fosse o último. A começar já hoje, aprende mais, ri mais e faz o que realmente gostas de fazer. 

Ler durante trinta minutos por dia fará maravilhas por ti. (…)Não leias à toa. Deves ser muito selectivo quanto ao que cultivas no jardim fértil da tua mente.(...) para tirares o máximo partido de um grande livro, tens de estudá-lo e não apenas lê-lo.

Rir é o melhor remédio para a alma. Mesmo que não tenhas vontade, vê-te ao espelho e ri-te durante uns minutinhos. Vais ver que te sentes fantástico. Portanto, começa o teu dia de uma maneira deliciosa. Ri-te…"

FELIZ ANO NOVO
Leiam e riam.
Muito!

Tirei daqui: “O monge que vendeu o seu Ferrari”, de Robin S. Sharma, Ed. Pergaminho, 2004
Foto da net.

23 dezembro, 2016

A todos... um BOM NATAL!


CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal
Lá para o Norte é melhor:
Há neve que faz mal.
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Poema de Fernando Pessoa, Portugal (1888-1935)
Pintura de Carlos Reis, Portugal (1037-)

21 dezembro, 2016

Peçam ao Pai Natal...


Um único deslize e a nova vida de um homem vai por água abaixo!
Acabei de ler o primeiro capítulo de “Quando ela era boa”, o romance de Philip Roth este ano publicado em Portugal.
Pouco sei sobre o que se segue mas o que já li… dá para aconselhar que o peçam ao Pai Natal.
A sinopse diz que a figura central da história – um drama familiar, na América provinciana dos primeiros anos do século XX) - é Lucy Nelson, uma jovem boa, sensível, moralista, independente que, depois de ver o pai falhado e alcoólico ir para a prisão, tenta regenerar os homens que a rodeiam, mesmo que isso signifique a sua própria destruição.
Ora bem, Lucy não aparece nas páginas que eu li. Nessas páginas a figura central é o seu avô materno: Willard Carroll, um homem bom, cuja história de vida me prendeu logo no primeiro parágrafo:
“NÃO SER rico, não ser famoso, não ser poderoso, nem sequer ser feliz, mas ser civilizado – era esse o sonho da sua vida (...) O que não queria sabia de certeza: viver como um selvagem. Tinha um pai que era um homem feroz e ignorante – caçador furtivo, mais tarde lenhador e, para o fim a vida, guarda nas minas de ferro. A mãe era uma mulher trabalhadeira com mentalidade de escrava por cuja cabeça nunca passava querer ter mais do que aquilo que tinha. (...) Com dezoito anos decidira ir ao encontro do mundo…”
O que se segue é intenso, comovente, arrebatador. Poucas, mas mesmo poucas vezes, eu me emocionei tanto com uma história de vida. E, recordo, li apenas um capítulo.
Se a vida de  Willard Carroll é inesquecível, como será a da neta Lucy?  
Se ela sair ao avô...

Lá para Janeiro voltarei a escrever sobre este romance. Para já, posso “bradar aos céus”: as primeiras 57 páginas deste Philip Roth de 1966 são fascinantes!
Peçam ao Pai Natal...

20 dezembro, 2016

Uma fé... uma missão...


“Para viver, todos têm de ter uma fé. Para viver, todos têm de ter uma missão. Não interessa se é humilde ou elevada, se é heróica ou quotidiana. Ter uma fé e uma missão significa estar inseridos no rio da vida, sentir-se parte dela, com um sentido, uma meta. Significa sentir que se tem uma tarefa útil ao mundo. Seguir a sua própria missão é como percorrer um caminho já traçado. Perdê-lo é como extraviar-se nos campos, pelos precipícios, sem orientação.

No entanto, de vez em quando, afastamo-nos dele. Temos períodos de extravio, de confusão. Perguntamos a nós mesmos o que estamos a fazer no mundo e somos tentados a deixarmo-nos levar pelo desespero. Mas devemos resistir para reencontrarmos o nosso caminho, para o reconhecermos. Devemos ter força de esperar que do escuro surja uma luz, uma esperança. E esta, mais cedo ou mais tarde, chega. Pode ser um encontro inesperado, uma nova oportunidade, alguém que nos pede ajuda. Às vezes é só uma mudança de humor, outras vezes é um sonho. De novo vislumbramos um significado, uma direcção. É como se se acendesse uma pequena chamazinha que o vento pode apagar de repente. Cabe-nos a nós protegê-la.”

Tirei daqui: “Tenham coragem”, de Francesco Alberoni, Bertrand Ed., 1999
Foto da net .

16 dezembro, 2016

"Jóia de família" - Agustina Bessa-Luís

Uma vida de família é uma cidadania em miniatura. Há leis que se aprovam, outras de que se desiste; há festas de presentes e de antepassados; há comemorações, experiências desordenadas, vícios calmos que duram uma vida, violências caladas ou manifestas, classes que se batem entre si, promoções de culturas, ruínas da alma, desejos que só a morte há-de saldar, cobiças que nem a herança resolve, culpas que decidem de mudanças.
Jóia de família” é um bom retrato da sociedade portuguesa dos anos 90. Sociedade que funciona com máscaras ideológicas, ou sexuais, ou psicóticas.
A trama - uma teia de incertezas bem urdida - aborda as mudanças nas relações familiares, o comportamento da burguesia campesina, a delinquência, o crime, a sexualidade, a infidelidade, a droga e a prostituição.
Os personagens, como na maioria dos personagens de Agustina, são bem construídos e convincentes.
António Clara, o protagonista, com dez dias de vida passa de pé descalço a herdeiro de uma fortuna grandiosa. A mãe, Celsa Adelaide, a criada feita parteira, torna-o terceiro filho de Rutinha Albergaria, quando esta desmaiada de cansaço não percebe que deu à luz um menino morto, roxo como um cravo roxo. Celsa, não hesita, esconde o nado morto e deita o seu próprio menino no berço de cambraia. Ninguém nunca suspeitará.
António “nasce” em Salto da Senhora, durante uma visita de Rutinha ao tio Simeão Albergaria, o tio rico que tinha no testamento uma cláusula que tornava seu único herdeiro o neto que nascesse em sua casa. Teria Rutinha conhecimento dessa cláusula? O velho Simeão desconfia mas…vinte anos depois, o filho da criada é um homem rico.
António é criado por governantas. Não se dá bem com os dois irmãos. Os pais estão permanentemente ausentes. Uma escoliose obriga-o a coxear ligeiramente, a abandonar os estudos, a afastar-se do trabalho. Passa a viver suspenso daquela herança como uma aranha do fio da teia.
Aos vinte e cinco anos enamora-se de Vanessa, uma bela mulher de quarenta e dois anos, no alterne desde os treze. Uma mulher ambiciosa, hostil ao mundo e fiel às paixões.
Indignada, Celsa Adelaide procura uma mulher "decente" para o filho. Encontra Camila, uma rapariga simples, acanhada, que nada exige, filha de burgueses remediados, que viam nela a salvação da decadência. Ela era a jóia da família.
O casamento com Camila  não afasta António da amante que, como amiga, passa a frequentar a casa da família. O dinheiro não faz gente.
Como vai Camila lidar com a infidelidade e a indiferença do marido, com o ciúme, com a presença constante de Vanessa?
Hum!
O perspicaz e mordaz narrador do romance diz que há vários casos de loucura na família de Camila.
Eu, já disse tudo... e tudo ficou por dizer.

Mais um romance de Agustina, mais um prémio, mais uma adaptação do cinema. “Jóia de família”, primeiro volume da trilogia O princípio da incerteza, foi distinguido em 2001 com o Grande Prémio de Romance e da Novela da APE, e adaptado ao cinema por Manoel de Oliveira.

Jóia de família, de Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editora, 201
345 págs.

13 dezembro, 2016

"Estar" ou "Tar" – são ambos verbos? Não!


ESTAR, sim, é um verbo irregular.
TAR não existe.

Para exemplo, conjugo o verbo ESTAR no presente do indicativo:
Eu estou
Tu estás
Ele/Ela está
Nós estamos
Vós estais
Eles/Elas estão

Então, por que razão os argumentistas de ficção portuguesa usam e abusam do (não verbo) TAR?
-Tou à espera da Maria.
- Tu tás cada vez mais impertinente.
- O João ao telefone.
- Tamos na escola.
- Eles tão a chegar.

O que é isto?
Há quem considere “isto" aceitável em linguagem oral, mas para mim são aberrações. 
Aberrações cada vez mais utilizadas nas telenovelas produzidas e transmitidas em Portugal, que agridem os ouvidos e a alma dos verdadeiros portugueses. Uma vergonha!

Ponham os nossos actores a falar o português de PORTUGAL.
O verbo “Tar” não é ensinado nas escolas. Não existe.

09 dezembro, 2016

"Numa casca de noz" - Ian McEwan

“E PARA AQUI ESTOU EU, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui. (…) Dia e noite com a orelha comprimida contra as paredes ensanguentadas, não me resta alternativa. Escuto, tomo notas mentalmente e inquieto-me. (…) Considero-me um inocente, mas, ao que parece, faço parte de uma conspiração. Parece que a minha mãe, abençoado seja o seu coração a patinhar incessante e ruidosamente, é cúmplice.
Parece, mãe? Não, És. Tu és. És envolvida. Sei isso desde os meus primórdios.”
É assim, sem meias palavras, que um feto prestes a nascer partilha com o leitor TUDO o que ouve (e sente) mergulhado no líquido amniótico na barriga da mãe. Um feto entendido em vinhos franceses (que a mãe ingere em abundância), conhecedor do estado do mundo (pelas conferências em podcast que a mãe ouve regularmente), erudito em literatura (o som dos audiolivros chega-lhe através dos auriculares da mãe), cúmplice involuntário de uma conspiração (a mãe, de conluio com o amante, planeia envenenar o seu pai).
O feto-narrador é filho de pais separados.
O pai, que se chama John, é um gigante de um metro e noventa e dois, braços vigorosos e peludos, excesso de peso, com um problema de pele, psoríase. É um poeta não reconhecido, proprietário duma editora falida, apesar de ter dado à estampa um laureado com o Nobel.
A mãe, que se chama Trudy, e que ele conhece melhor pelo lado de dentro, é uma bela loira de olhos verdes, nervosa, egoísta, desonesta, cruel… esperem lá, eu amo-a, ela é a minha divindade e preciso dela. Retiro o que disse!
Foi o pai que saiu da mansão que herdou, o lar da sua infância, por acreditar ser sensato conceder a Trudy o tempo e espaço que ela lhe disse precisar. Espaço! Ela devia vir para aqui, onde nos últimos tempos mal consigo dobrar um dedo. Pai que continua a escrever poemas em louvor da mulher amada, que visita com regularidade na expectativa de que um dia ela lhe diga para volta. Mulher que o despreza e rapidamente conduz à porta, com a desculpa de que precisa de descansar.
Porta fechada para ao pai; porta aberta ao amante.
O amante, que se chama Claude, é um promotor imobiliário, estúpido e ambicioso, que só sabe falar de roupa e de carros, que abusa de vinho, de comida e de sexo.
Nem toda a gente sabe o que é ter o pénis do rival do nosso pai a centímetros do nariz. Nesta última fase, deviam pensar em mim e conter-se. Se não em nome do parecer clínico, pelo menos por cortesia. Fecho os olhos, cerro as gengivas, apoio-me às paredes uterinas. Esta turbulência arrancaria as asas a um Boeing. A minha mãe aguilhoa o amante, chicoteia-o com os seus gritos de feira. É o Poço da Morte!
Pois bem, é esse parolo de cérebro embotado que por cobiça (a mansão talvez valha oito milhões de libras), engendra um esquema para envenenar o homem que é seu irmão, marido de Trudy, pai do feto-narrador. O que é isto?
O feto esclarece: a minha mãe deu preferência ao irmão do meu pai, enganou o marido, destruiu o filho. O meu tio roubou a mulher do irmão, ludibriou o pai do sobrinho, insultou o filho da cunhada.
Se pensam que divulguei muito da trama, enganam-se. Não passei da página 37. Acreditem que o que se segue é surpreendente e “salva “o romance: crime; investigação policial; vingança do feto. Está na altura de intervir. De acabar o que tem de ser acabado. Está na altura de começar.

Numa casca de noz, não é um grande romance mas a escolha do narrador - um nascituro sem nome que disserta sobre o estado do mundo - é surpreendente. Tenho as minhas fontes, escuto.
Gostei!

Numa casca de noz, de Ian McEwan
Tradução de Ana Falcão Bastos
Ed. Gradiva, 2016
180 págs.

06 dezembro, 2016

21º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


235-(cerca de 4-4-1930)
“Por mais que pertença, por alma, à linhagem dos românticos, não encontro repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual a sua clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão álacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer.”

Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino, contemplador sem razão do mundo sem propósito.”

239-(10-4-1930)
"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


01 dezembro, 2016

6º aniversário do "rol de leituras"


“Associa-te às pessoas mais nobres que puderes encontrar; lê os melhores livros; convive com os poderosos; mas aprende em solidão a ser feliz.”
Saul Bellow, escritor americano (1915-2005), in “Ravelstein”, Ed. Teorema, 2001

Mais um ano, que passou num ápice, e eis que o meu "rol de leituras" celebra o seu 6º aniversário.
Este não foi um ano fácil. Foi, aliás, bastante complicado. Pensei em desistir do meu rol, mil vezes.
2016 foi um ano difícil, com problemas relacionados com a saúde de familiares a deixarem-me angustiada, sem tranquilidade nem motivação para a leitura.
Hoje, no exacto dia do 6º aniversário do “rol de leituras”, ainda não sei o que fazer: continuar, ou ficar por aqui?
Os livros que acabaram empilhados sem serem lidos, com o último romance de Philip Roth a “olhar para mim”, instigam-me a continuar. Vou ter que decidir.
Hoje, não! Hoje vou festejar, começando a ler: “Numa casca de noz”, de Ian McEwan, depois, “salto” para Philip Roth, depois…

Obrigada a todos os que passaram por aqui.
Obrigada pela motivação e pela força.
Obrigada do coração.
Por favor leiam.
Abraço.

30 novembro, 2016

"Quando Lisboa tremeu" - Domingos Amaral

Apesar de todos falarem de Deus, aqueles foram os dias em que Deus abandonou as pessoas e as deixou totalmente sós no confronto com uma natureza brutal. Nesses dias, fomos como os primeiros seres que estiveram na terra, há muitos e muitos anos, antes de no mundo haver sabedoria ou cortesia ou solidariedade.
Sinopse:
“Lisboa, 1 de Novembro de 1755. A manhã nasce calma na cidade, mas na prisão da Inquisição, no Rossio, irmã Margarida, uma jovem freira condenada a morrer na fogueira, tenta enforcar-se na sua cela. Na sua casa em Santa Catarina, Hugh Gold, um capitão inglês, observa o rio e sonha com os seus tempos de marinheiro. Na Igreja de São Vicente de Fora, antes da missa começar, um rapaz zanga-se com a sua mãe porque quer voltar a casa para ir buscar a sua irmã gémea. Em Belém, um ajudante de escrivão assiste à missa, na presença do rei D. José. E, no Limoeiro, o pirata Santamaria envolve-se numa luta feroz com um gangue de desertores espanhóis.
De repente, às nove e meia da manhã, a cidade começa a tremer. Com uma violência nunca vista, a terra esventra-se, as casas caem, os tectos das igrejas abatem, e o caos gera-se, matando milhares. Nas horas seguintes, uma onda gigante submerge o Terreiro do Paço e, durante vários dias incêndios colossais vão aterrorizar a capital do reino. Perdidos e atordoados, os sobreviventes andam pelas ruas, à procura dos seus destinos. Enquanto Sebastião José de Carvalho e Melo tenta reorganizar a cidade, um pirata e uma freira tentam fugir da justiça, um inglês tenta encontrar o seu dinheiro, e um rapaz de doze anos tenta encontrar a sua irmã gémea, soterrada nos escombros.”
Quando Lisboa tremeu” é um emaranhado de histórias de gente desesperada que nas horas e dias seguintes ao terramoto que devastou Lisboa luta pela sobrevivência nas ruas da cidade destruída, alagada, queimada, pejada de ladrões e criminosos. Nos primeiros momentos depois do grande terramoto, os humanos transformaram-se em seres que só pensavam na sua própria sobrevivência.
Histórias contadas por Filipe Assunção, o piloto português atacado por piratas árabes, cativo em África durante dois anos, renegado pelo reino, pirata em barcos árabes durante mais de uma década. Filipe Assunção, ou melhor, o pirata Santamaria, acabou capturado por uma esquadra francesa na costa Algarvia, entregue às autoridades portuguesas, julgado e condenado à morte. Estava há três meses detido no Limoeiro, quando Lisboa foi literalmente dizimada.
Santamaria, sempre na companhia de Muhammed, o pirata seu fiel amigo, cruza-se nas ruas com os protagonistas dessas histórias: a bela irmã Margarida; o corajoso rapaz; o capitão Hugh Gold; a irmã Alice; Ester, a escrava negra; e outros mais. Ele ajuda-os e é ajudado. O facto de termos sobrevivido criou em nós uma cumplicidade especial que nos aproximava e humanizava, apesar dos conflitos desses dias.
Pois bem, mas essas histórias de confusão, dor e sobrevivência recordadas por Santamaria nas masmorras da Torre de Belém, para onde foi mandado pelo duro e impiedoso Sebastião José de Carvalho e Melo, seu "amigo de outros tempos", eu não vou divulgar, não.
Algumas são violentas, outras tristes e outras… divertidas. Leia-as. Ponto final.

Depois de ler a sinopse pensei: é agora que vou ficar a “saber tudo” sobre o terramoto que devastou Lisboa, em 1755. Bem, não fiquei a saber tudo sobre o terramoto, mas fiquei a saber um pouco mais sobre amizade, amor, solidariedade, esperança, respeito, bravura e serenidade.
Quanto às histórias, li-as mas... já as esqueci. 
Este romance lê-se (e esquece-se) facilmente.
Acontece!

Quando Lisboa tremeu, de Domingos Amaral
Ed. Casa das Letras, 2010
487 págs.

22 novembro, 2016

"Homem na escuridão" - Paul Auster


A mente tem uma mente que é só dela.
“Sozinho na escuridão, revolvo o mundo na minha cabeça enquanto me debato com mais uma insónia, com mais uma noite em branco na imensidão da natureza selvagem da América. Lá em cima, a minha filha e a minha neta estão a dormir nos seus quartos, sozinhas também elas, Miriam, a minha única filha, que tem quarenta e sete anos e que tem dormido sozinha nestes últimos cinco anos, e Katya, filha única de Miriam, que tem vinte e três anos e que costumava dormir com um jovem chamado Titus Small, mas Titus está morto agora, e Katya dorme sozinha com o seu coração destroçado.”
Logo no primeiro parágrafo de “Homem na escuridão” conhecemos quatro das cinco personagens da história principal deste romance: o narrador/personagem August Brill, Miriam, Katya, Titus. Apenas falta Sonia, companheira de uma vida de Brill, mãe de Myriam, avó de Katya.
Eu disse «personagens da história principal» porque neste romance há outras histórias (com outras personagens) “dentro” da história dita principal. Histórias de amor, dor, perda, angústia, solidão, culpa, violência, sobrevivência. E há filmes. Os filmes estão a transformar-se numa droga. Creio que devíamos reduzir o número de sessões – ou mesmo parar por um bocado. Diz Brill à neta depois de mais uma maratona de filmes.
August Brill, 72 anos, viúvo(?), crítico literário reformado, vive em casa de Miriam no Vermont, há mais de um ano. Recupera de um acidente de viação. Depois da saída do hospital, não conseguiu recusar o convite da filha: pai, não está a perceber. Eu preciso de ti. Sinto-me tão horrivelmente sozinha naquela casa…Não sei até quando é que aguentarei tanta solidão…
Brill é o “ homem na escuridão”, que nas noites de insónia e angústia inventa histórias. Histórias onde a América não está em guerra com o Iraque; as Torres Gémeas não caíram; as eleições presidenciais de 2000 conduziram a uma sangrenta guerra civil. Podem não ser nada de especial, mas, enquanto estou dentro delas, impedem-se de pensar nas coisas que preferiria esquecer.
Acontece que por vezes a mente mistura a ficção com a realidade, e Brill é obrigado a lembrar o que quer esquecer:
- a morte recente de Sonia, a mãe da sua filha, a mulher que amou, que não valorizou, que trocou por outra, que voltou a recebê-lo quando a tal outra o trocou por outro. Brill e Sonia não voltaram a casar (porque ela não quis) mas viveram juntos e felizes até que a morte os separou. 
- a triste solidão de Miriam, que canaliza todas as energias para o ensino e para a escrita, desde que há cinco anos foi abandonada pelo marido. Miriam e Richard cometeram o mesmo erro que Sonia e eu: casaram-se demasiado novos.
- o sofrimento indescritível de Katya, desde a execução de Titus no Iraque, para onde foi como voluntário. Ela tinha dezoito anos e estudava Cinema na universidade quando os pais se divorciaram. Absorveu bem o choque. Agora, aos vinte e três anos, está desfeita. Culpa-se pela morte do jovem que a amava mas que ela não conseguia amar.
August Brill, deitado na cama, de olhos fixos na escuridão, conta histórias a si próprio, enquanto o bizarro mundo continua a girar…
“Pigarreio e, passado um segundo, estou a tossir de novo e a vomitar gordas escarretas e, claro a tapar a boca para abafar o ruído… de maneira que engulo em seco e deixo que esta porcaria viscosa deslize pela minha garganta, e digo para mim mesmo pela quinquagésima vez nos últimos cinquenta dias que tenho de deixar de fumar, aí está uma coisa que eu sei que nunca acontecerá, mas mesmo assim continuo a dizer para mim mesmo que tenho de deixar de fumar, só para me torturar com a minha própria hipocrisia.”

Leia e… veja filmes: “Ladrões de Bicicletas”, “Viagem a Tóquio”… Há certos filmes que são tão bons como livros, tão bons como os melhores livros.
Leia e… apaixone-se pela vida.
A noite ainda é uma criança…

Homem na escuridão, de Paul Auster
Tradução de José Vieira de Lima
Edições ASA, 2008
160 págs.

18 novembro, 2016

"Santo António" - Agustina Bessa-Luís

«A tristeza é a dor silenciosa» - diz S. António.

S. António é um confessor, um intermediário do perdão. Confessor como pregador; confessor como confidente.
Nas badanas do livro um curtíssimo texto avisa: "SANTO ANTÓNIO é a primeira obra em que Agustina Bessa-Luís transpõe os caminhos da ficção, para se deter num personagem histórico… uma biografia conduzida pela meditação... um livro como só um leigo pode escrever”.
Foi, pois, avisada, que iniciei a leitura da biografia do Santo, advogado das coisas perdidas, o protector dos casamentos.
S. António nasceu em 1190 (data provável), em Lisboa, Portugal, à época designado como o fim do mundo. Foi frade agostiniano no Convento de São Vicente de Fora, em Lisboa; aprofundou os estudos religiosos no Convento de Santa Cruz, em Coimbra; tornou-se franciscano em 1220; viajou por Marrocos, Itália, França; faleceu em 1231, em Pádua, onde repousam os seus restos mortais; foi canonizado pela Igreja Católica em 1232. 
Segundo Agustina, S. António possuiu as sete energias instauradas pela inteligência; possuiu o intelecto individual que participa da eternidade da inteligência e está acima do pensamento; possuiu a verdade, possuiu a alegria, pois a alegria brota da plenitude do conhecimento, possuiu a prova apodíctica e também a vida, porque a vida é inseparável da inteligência; possuiu a perfeição; possuiu o dom da pregação
«Vai, vende tudo o que tens e segue-me», diz-lhe o Senhor.
Assim teria feito António, herdeiro de muitos bens.
“Na vida de Jesus há dois períodos distintos um do outro. O primeiro é o tempo poético, aquele em que se desloca pela Galileia, chama os seus discípulos, convive com agente simples, gente que é pecadora, crédula e amorável. O outro é o tempo duma experiência urbana, é a entrada na cidade de Jerusalém; aí, mesmo quando não existe a hostilidade, insinua-se a difamação. E perante a grande urbe de coração seco, impenetrável ao mistério, Jesus chora. São lágrimas de um homem posto perante a vergonha dum comportamento que impõe o silêncio de Deus.
Em S. António parece haver também esses dois tempos humanos. Foi o jovem inquieto de sabedoria e glória santa, deixou os lugares familiares para ir ao encontro do que não desejava que fosse fútil nem vulgar. Depois, foi o pregador, comovido perante a planície paduana; e mais tarde foi o homem velho, aquele que, sem ter muita idade, conhece o seu coração e treme perante nenhuma verdade. E quando se torna amigo, conselheiro e chefe viril duma província espiritual, a morte chama-o, sem surpresa, porque desde há muito há nele um pacto com a morte."

Foi uma experiência gratificante e enriquecedora ler a história de SANTO ANTÓNIO escrita pela perspicaz Agustina.
Não foi tarefa fácil, pois a sua prosa é rebuscada, saltitante, difícil. Mas, há que dizê-lo, também é sensível e inteligente. 
Tenho para mim que escrever sobre a vida de uma pessoa deve ser complicado. E se essa pessoa é o Santo de todo o mundo, então, deve ser complicadíssimo. Só posso imaginar o quanto Agustina teve de consultar, escrever e reescrever até chegar à versão final desta biografia. Boa ou má, os entendidos que se pronunciem.
Eu, apenas aconselho que a leia. Sem pressa. Devagar, devagarinho, acabará por saber quem foi, por onde andou, o que fez, ensinou e pregou o "nosso Santo casamenteiro". 

«Não há nada escondido que não venha a revelar-se» - diz S. António.

Santo António, de Agustina Bessa Luís
Guimarães Editora, 1993
206 págs.

15 novembro, 2016

Vivemos com uma pessoa…


Vivemos com uma pessoa dois, dez, vinte anos. Surpreende-nos a quantidade de coisas que esquecemos? Há porções inteiras da nossa vida que desaparecem pura e simplesmente; as nossas recordações confundem-se. O que andámos a fazer durante todo esse tempo? De que maneira passámos o tempo como casal?
Podem tornar a emergir fragmentos dispersos aqui e além, mas nunca esquecemos aquele primeiro encontro. Aquelas mãos a atraírem-nos para mais perto, a fecharem-nos os olhos à medida que saboreamos a doçura da boca daquela pessoa estranha. Vislumbres de pele, olhos, cabelos a meterem-se de premeio, ombros. Enfiámos todas essas imagens naquele glorioso encadeado, e a cadeia nunca se quebrou, as contas nunca se soltaram do fio. Ficarei contigo para sempre. E surpreender-nos-emos ao perceber que, muitas vezes, é tudo quanto conseguimos guardar do outro.”

“Esforçamo-nos toda a vida por esquecer as pessoas que nos magoaram, mas, ao ficarmos mais velhos e mais fracos, a sua lembrança vem novamente à tona, como uma bolha de água. Temos de nos render, porque nos sentimos demasiado fatigados para lutar e tornar a afundá-la. E talvez, inesperadamente, descubramos que, em lugar de nos reavivar a ira, essas recordações produzem um inesperado encanto.”

Tirei daqui: 
Texto de “Casa Rossa”, de Francesca Marciano, Ed. Dom Quixote, 2006
Foto da net - pintura de Romero Britto.

13 novembro, 2016

"A gaivota" - Sándor Márai


As recordações pesam muito. É uma pena.
Ele é um alto funcionário ministerial, húngaro, de quarenta e cinco anos, culto, sensato, honrado e solitário.
Sentado à secretária, escrupulosamente arrumada, olha o documento que acabou de redigir e, com um lápis roxo, escreve na margem da folha: «Estritamente confidencial».
Daí a pouco seria passado a limpo pela sua assistente, metido num envelope e levado ao ministro. Tudo feito de forma estrita e confidencial. Depois, seria impresso com tinta negra, pelas rotativas das grandes máquinas de impressão, declamado na rádio, lido por milhares e milhares de pessoas e… o coração da nação começaria a bater.
Mas o que era aquilo que tinha acabado de fazer?
Era um despacho oficial de enorme significado, que iria afectar a vida de milhões de pessoas.
Sentado à secretária, na grande sala ovalada, ele tapa a cara com as mãos trémulas. Pensa na guerra e tenta imaginar o que essa palavra, na realidade, vai significar no dia seguinte, ou daí a um ano… pensa na sua própria guerra mundial, a sua própria história mundial. Sente-se estranhamente tranquilo.
Nessa noite… vai à Ópera. Vai-se vestir de gala e vai à Ópera…
Entretanto, no exterior, uma mulher jovem e bela sobe apressadamente as escadas do prédio. Vai ao seu encontro, mas ele ainda não o sabe. Também ela vai encontrar-se com um homem que nunca viu antes.
Quando ela entra no gabinete, ele levanta-se da secretária. Observam-se longamente.
«Tão pálido», pensou a mulher.
«Devo parecer pálido», pensou ele. Imóvel, com o cartão dela na mão, uma sensação de insegurança invade-lhe o corpo.
Esta mulher já nasceu e morreu uma vez.
Esta mulher já entrou, há cinco anos, no meu gabinete, exactamente da mesma maneira; media um metro e sessenta e oito e pesava cinquenta e dois quilos. Queria que morrêssemos juntos, mas eu não podia cumprir o seu desejo.
Morreu sozinha… enterrada bem fundo na sua campa. Mas eis que ela volta.
Assombrado, manda sentar a mulher desconhecida e inicia um interrogatório. Ela responde educadamente. Chama-se Aino Laine «a única onda», é finlandesa, licenciada em inglês e francês, professora, vinte anos, alta, ossuda e loira. Solicita autorização de residência e procura um emprego na Hungria.
- Posso contar com a sua ajuda, senhor conselheiro?
- Estamos em guerra, não sabe?... Volte para a Finlândia…
Aino fala fluentemente húngaro e (apenas) a sua voz não lhe faz lembrar a voz da mulher morta.
Então, contrariando a honra e o decoro das suas funções, ele pergunta à mulher:
- Quer ir comigo à Ópera esta noite?
(A resposta dela vem logo a seguir… mas no livro.)
Ele amou uma única mulher: Ili, inteligente, bonita e saudável. Suicidou-se aos vinte e dois anos, com cianeto. Era química.
Nessa manhã, no ministério, encontrou-se com o duplicado de Ili.
À noite, frente ao espelho, penteia-se, observa o rosto pálido, marcado e descarnado, e reflecte:
O que esperaste da primeira, e o que esperas agora da sua cópia? A felicidade? A felicidade não existe, meu pobre rapaz. No fundo da existência apenas há o tédio e a fraqueza. Deus, ao criar o mundo, não conseguiu construir melhor.
Depois, sai de casa. Encaminha-se para a Ópera. Está um tudo-nada atrasado. Estará «a única onda» à sua espera?
Há noites em que não importa o que se passa…

O que importa é ler. Ler, de dia ou de noite, escritores como Sándor Márai (1900-1989), senhor de uma escrita incomparável, inteligente, tocante, perfeita.
A gaivota”, mesmo não sendo o que de melhor já li dele, é… um assombro.
Encontrámo-nos e despedimo-nos…

A gaivota, de Sándor Márai
Tradução de Piroska Felkai
Ed. D. Quixote, 2016
158 págs.

08 novembro, 2016

Nós somos aquilo que lemos...


Os livros nas minhas estantes não me conhecem até eu os abrir.
Sócrates, citado por Alberto Manguel.

"Descobri pela primeira vez que sabia ler aos quatro anos. (…)
Lemos para compreender ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase tanto como respirar, é uma das nossas funções vitais.
Só aprendi a escrever muito mais tarde, quando tinha sete anos. Talvez pudesse viver sem escrever. Não acho que pudesse viver sem ler. (…)
Depois de ter aprendido a ler as letras, lia tudo: livros, mas também, avisos, anúncios, as letras miudinhas nas costas dos bilhetes de eléctrico, cartas deitadas no lixo, jornais velhos apanhados debaixo do meu banco no jardim, grafitos, a contracapa de revistas nas mãos de outros leitores, no autocarro. (…)
A experiência das coisas tive-a em primeiro lugar através dos livros. (…)
Cada livro era um mundo em si e nele eu procurava refúgio.

Ler começa com os olhos. (…)
Um facto é óbvio para todos os leitores: as letras são apreendidas pela visão. Mas através de que alquimia se transformam as letras em palavras inteligíveis? Que se passa dentro de nós quando nos confrontamos com um texto? Como é que as coisas são vistas, as “substâncias” que chegam através dos olhos ao nosso laboratório interno, as cores e formas dos objectos e das letras, se tornam legíveis? Que é, na realidade, o acto a que chamamos ler?

Ler em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de transportar na mente bibliotecas íntimas de palavras relembradas são capacidades extraordinárias que adquirimos através de métodos incertos. No entanto, antes de estas capacidades poderem ser adquiridas, o leitor precisa de aprender a técnica básica de reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu comunicar; por outras palavras, tem de aprender a ler.

Nós somos aquilo que lemos.”

Alguns livros são para saborear, outros para engolir de uma assentada, e alguns, poucos, para mastigar e digerir.
Francis Bacon, citado por Alberto Manguel.

Tirei daqui:

05 novembro, 2016

"Casa Rossa" - Francesca Marciano


Há qualquer coisa que foi transmitida de mulher para mulher na minha família. Não sei como lhe chamar. Um segredo, um legado tácito - precisa de se manter oculta, é uma coisa que envergonha. A sua carga modelou cada uma de nós, deformou-nos para sermos o que hoje somos, tal como as videiras são lentamente forçadas pelo arame.
Enquanto lia “Memórias laurentinas”, de Agustina Bessa-Luís, veio-me à memória este romance de Francesca Marciano, que li em 2006 e não mais esqueci.
Agora não o reli, apenas folheei as páginas em busca de frases sublinhadas para desvendar um pouquinho da comovente e fascinante história de uma família italiana, do século XX.
História reconstituída por Alina com fragmentos do passado da família, que também é sua, com segredos da família e do país, que há muito deviam estar enterrados, com mistérios da vida de três extraordinárias mulheres que habitaram Casa Rossa, a magnífica casa de campo dos Strada, em Puglia:
Renée Strada (avó) - uma bela tunisina, mulher e musa de um pintor que abandonou por uma mulher e fugiu para a Alemanha nazi;
Alba Strada (mãe) - viveu a dolce vita na Roma dos anos cinquenta e casou-se com um guionista melancólico que morreu em circunstâncias misteriosas;
Isabella Strada (neta) - juntou-se às Brigadas Vermelhas nos anos 70.
Comprada pelo avô Strada, nos finais dos anos 20, setenta anos depois Casa Rossa foi vendida.
... completamente despida numa só manhã, voltará a emudecer. Uma tela branca, onde outras pessoas escreverão a sua história.
Alina Strada, irmã de Isabella, filha de Alba e neta de Renée, fecha a porta e... conta-nos uma história apaixonante, acerca do que se perde no caminho.
Casa Rossa lê-se e não se esquece.
Verdade!

Casa Rossa, de Francesca Marciano
Tradução de J. Teixeira de Aguilar
Ed. Dom Quixote, 2006
398 págs.

01 novembro, 2016

20º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


226-(21-2-1930)
“É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo.”

229-(23-3-1930)
“Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo…”

“O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


28 outubro, 2016

"Memórias laurentinas" - Agustina Bessa-Luís


… a vida é assim, o peixe mau não tem espinhas e o bom está cheio delas.
Memórias… memórias… memórias.
Este romance é um entrelaçado de memórias: privadas (a vida de uma família vulgar, na segunda metade do séc. XIX, início do séc. XX)) e públicas (valores e tradições vigentes na época).
A narrativa começa com o estranho suicídio de António Guedes Ferreira, filho de vinhateiros ricos, bacharel em leis, nascido no Lugar das Cales, em Loureiro, uma aldeia de velhos solares e casebres miseráveis, de má fama, de malfeitores. Dizia-se que lá se matavam as pessoas “por um bom dia”.
Suicídio cometido depois de uma conversa de António Guedes com Perico, um ladrão de estrada, cruel, falso e mentiroso, que fazia consertos lá em casa, pequenos recados. Não eram amigos. Respeitavam-se, apenas.
Amigo de verdade António Guedes só tinha um: António Soeiro, vizinho, da sua idade, como ele proprietário. Soeiro é um rufião, vaidoso, ambicioso, oportunista, viciado no jogo. Acontece que António Guedes, homem fraco e crédulo, só  vê virtudes no amigo e empresta-lhe elevadas somas de dinheiro. Dinheiro para sempre perdido pois Soeiro está arruinado. Perdeu no jogo a fortuna herdada do pai.
Certo dia, ao regressar de um encontro com os credores, Soeiro encontra Perico e diz-lhe: temos de falar. Falam e nos dias seguintes o malfeitor ronda a casa de António Guedes. Acaba por entrar, manso como um cordeiro, e pede para falar a sós com ele.
O que lhe disse não ficou registado nem ninguém ouviu. Mas foi uma revelação tão poderosa e demolidora que António Guedes morreu disso. Envenenou-se. Só Perico sabia as razões.
(Eu também sei, mas nada desvendo, para que você as encontre espalhadas nas páginas deste romance.)
António Guedes casa cedo com Maria Maximina, mulher inteligente e trabalhadora, filha de uma família com títulos e apelidos mas sem fortuna. Após a morte do marido Maximina fica a braços com três filhos e poucos rendimentos, dado que a maior parte dos bens vai, por direito, para Lourenço Guedes Ferreira, o filho mais velho, o morgado.
Lourenço Guedes fica rico aos dezoito anos, aos dezanove já tinha gasto quase tudo e aos vinte está arruinado. Esbanja dinheiro em casas de jogo com o filho de António Soeiro, como fizera o pai na versão antiga. Aos vinte e cinco casa com uma jovem de Santa Comba. Nascem cinco filhos, só dois sobrevivem: Lourenço, doido acabado, e Zília. Enviúva e volta a casar, com Lourença Jurado, vinte anos mais nova, filha de um dos homens mais ricos de Zamora.
Para refazer a vida vai para África, seduzido por um contrato com os caminho-de-ferro e os negócios em parceria com... Soeiro, o vizinho!
África salvo-o da penúria. No regresso definitivo, compra casa em Zamora e monta uma fábrica de moagem. Prospera. Chama, então, para junto de si, os filhos do primeiro casamento e… tudo começa a correr mal. O jovem Lourenço, para encobrir roubos de farinha que vendia às escondidas, incendeia o armazém. O pai recusa-se a internar o filho, reconstrói o armazém e volta à luta. Por pouco tempo pois o filho louco acaba por destruir a totalidade da fábrica.
Lourenço Guedes aceita aquilo como um sinal, sempre benvindo, de que devia retomar o caminho noutra direccção, e toma duas decisões: dá ao filho a parte da herança da mãe e manda-o viajar; vende o que lhe resta, indemniza os fregueses e volta para Portugal com a mulher e as filhas.
Instala-se em Matosinhos e obtém a concessão dos trabalhos do Porto de Leixões. Volta a ganhar muito dinheiro.
Lourenço Guedes, fez duas fortunas, salvou a pele, teve catorze filhos, dos quais dez inviáveis, acumulou decepções e chamou a tudo isso uma história de loucos. E escreveu um diário, que salvou do esquecimento factos marcantes da vida de três gerações da sua família.

Desvendei muito? Não! Repare que nada disse sobre as mulheres da família; nem sobre as viagens de Lourenço, o incendiário; nem sobre...
As memórias laurentinas assentam numa história de vingança que leva séculos a consumar.
Acredite que MUITO ficou por desvendar.

Se gosta de sagas familiares inteligentes, convincentes, surpreendentes, esta é para si.
Acomode-se no sofá, livro nas mãos, manta nas pernas (já apetece), um lápis para sublinhar e um bloco para criar a árvore genealógica dos Guedes Ferreira. Isto, para não se perder na intrincada trama.
Eu não me perdi, mas desisti... da árvore, claro!

Memórias laurentinas, de Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editora, 1996
299 págs.

25 outubro, 2016

Tivesse eu a organização deste mundo...


Tivesse eu a organização deste mundo, iria estabelecer um certo ponto, digamos por volta da idade dos trinta, idade essa em que, ao ser atingida, um homem seria automaticamente relegado para um plano onde a sua mente não voltaria a ser perturbada com a recordação fútil das tentações às quais resistiu e da beleza que não conseguiu recolher. Acho que é a inveja que nos faz desejar evitar que os jovens façam coisas que nós não tivemos a coragem ou a oportunidade de conseguir outrora, e não temos o poder de conseguir agora.”

Tirei daqui: “A recompensa do soldado”, de William Faulkner, Ed. Casa das Letras, 2010
Foto da net.

18 outubro, 2016

Bob Dylan - Prémio Nobel da Literatura, 2016


Bob Dylan – Prémio Nobel da Literatura 2016?
Como? Porquê? Não é possível!
Acreditem, a minha primeira reacção foi de raiva, choque, tristeza, desilusão.
E demorei a aceitar… a entender… a perdoar a Academia Sueca por premiar “novas formas de expressão poética”  e continuar a desconsiderar o meu escritor MAIOR.
Depois… depois acalmei.
Acalmei e aceitei:   Bob Dylan, músico, compositor e poeta, 75 anos, merece a distinção, sim senhor.
Agora,  há que manter a esperança -  em 2017 celebrarei entusiasticamente a escolha da Academia.
Roth, até para o ano e não morras, please!

Forever Young
May God bless and keep you always
May your wishes all come true
May you always do for others
And let others do for you
May you build a ladder to the stars
And climb on every rung
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

May you grow up to be righteous
May you grow up to be true
May you always know the truth
And see the lights surrounding you
May you always be courageous
Stand upright and be strong
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

May your hands always be busy
May your feet always be swift
May you have a strong foundation
When the winds of changes shift
May your heart always be joyful
May your song always be sung
May you stay forever young
Forever young, forever young
May you stay forever young

14 outubro, 2016

"A recompensa do soldado" - William Faulkner


Ele é toda a humanidade, a sua influência irradia a sua situação, e todos aqueles próximos dele se tornam estéreis e insípidos, de algum modo perto da morte… O seu ferimento determina como as pessoas vivem, como amam, como se relacionam consigo e com os outros.
(Frederick R. Karl, na Introdução.)

Escrito em 1925 e publicado no ano seguinte, “A recompensa do soldado” – primeiro romance daquele que viria a ser considerado “o principal romancista norte-americano do século XX”, galardoado com a Prémio Nobel de Literatura, 1949 - conta a história do regresso a casa de três jovens aviadores americanos, combatentes da Primeira Guerra Mundial: Donald Mahon, Joe Gilligan e Julian Lowe.
No centro da narrativa está o tenente Mahon, que regressa para junto da família e da noiva brutalmente marcado pela guerra: desfigurado por uma cicatriz terrível no rosto, a cegar, amnésico, a coxear.
A acção começa com os três a viajar de comboio rumo às suas cidades. Gilligan e Powers, fisicamente em melhor estado que Mahon, celebram de uma forma efusiva e desconcertante esse regresso, enquanto Mahon agoniza.
Apesar de todos os excessos, ambos decidem levar o tenente a casa. A eles junta-se Margareth Powers, uma jovem viúva de um soldado aviador morto em França que, impressionada com o estado do moribundo, se oferece para os acompanhar, tomar conta do soldado e suportar as despesas do seu tratamento.
- Claro. O soldado morre e deixa-lhe dinheiro, e você vai gastar o dinheiro a ajudar outro soldado a morrer confortavelmente. Não é irónico?
- Presumo que sim… É tudo irónico. Horrivelmente irónico.
Acabam por ir os três a casa dos Mahon, em Charlestown, Geórgia.
Margareth vai à frente, para preparar a família e fala com o pai, o reverendo Mahon, a quem esconde o verdadeiro estado do doente.
- Doente? – trovejou ele. – Doente? Mas nós vamos curá-lo. Tragam-no para casa, que aqui, com boa comida, descanso e atenção, iremos pô-lo bom dentro de uma semana. Hem, Cecily?
Cecily Saunders é a namorada de Mahon. Os pais fizeram com que ficassem noivos antes de ele partir para a guerra. Ele partiu à espera que ela esperasse por ele e regressou esperando que ela o aceitasse.
Ela esperou-o, traindo-o com Geroge Parr. Será que aceita casar com ele, agora que tem o rosto terrivelmente desfigurado?
- Nunca, nunca. Se tiver de voltar a ver a cara dele, eu… eu morro.
Não morre e casa. Mas não com Mahon.
Gillian e Julian continuam junto do amigo. Ambos se perdem de amores pela doce Margareth.
Margareth que, por amor e uma certa dose de compaixão, aceita casar com Mahon.
A primavera avança e Mahon piora. Já mal se levanta. Está a morrer.
A família continua a acreditar na sua recuperação. Margareth  não.
Entretanto, no casarão triste, ouve-se o tiquetaque do relógio da cozinha: Vida. Morte. Vida. Morte. Vida Morte. Vida. Morte.

Amor, amizade, traição, humor negro, esperança, desespero, ingratidão, lágrimas, oportunismo, compaixão, sofrimento, agonia, morte… há de tudo neste romance dramático, denso de emoções e sentimentos, sobre o pós-guerra de jovens combatentes e o impacto devastador do regresso da guerra de um filho mutilado. Mas tudo, não chegou para me cativar.
Um primeiro romance, sem qualquer brilho.
Lê-lo, não foi “pêra-doce”.

A recompensa do soldado, de William Faulkner, Prémio Nobel de Literatura, 1949
Tradução de Maria João Freire de Andrade
Ed. Casa das Letras, 2010
317 págs.

11 outubro, 2016

Lírios dourados com oito centímetros...



“A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. (…)
O seu valor residia, porém, nos pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados com oito centímetros» (san-tsun-gin-lian). (...)
Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimentos, dobrando todos os dedos, excepto o grande, para dentro e para baixo da planta. Depois pôs-lhes uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaça-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor.
O processo demorava anos. Mesmo depois dos ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite, em tiras de pano, pois no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes. Quando suplicava à mãe que lhe tirasse as faixas, ela chorava e dizia-lhe que isso arruinaria toda a sua vida futura, e que fazia aquilo pela felicidade dela.
Naqueles tempos, quando uma mulher casava, a primeira coisa que a família do noivo fazia era examinar-lhe os pés. Uns pés grandes, ou seja, uns pés normais, traziam vergonha para a casa do marido. (…)
O costume de enfaixar os pés foi introduzido na China há cerca de mil anos, segundo se diz por uma concubina do imperador. (…)
As mulheres não podiam tirar as faixas mesmo depois de adultas, pois os pés começariam a crescer novamente. Só à noite, na cama, lhes era possível aliviar temporariamente o tormento, afrouxando um pouco as tiras de pano. Calçavam, então, uns sapatos de sola macia. Os homens raramente viam nus uns pés enfaixados, que estavam geralmente cobertos de carne apodrecida e exalavam um cheiro horroroso quando se tiravam as faixas. Lembro-me de, em criança, ver a minha avó constantemente cheia de dores. Sempre que regressávamos das compras, a primeira coisa que ela fazia era meter os pés numa bacia de água quente, suspirando de alívio. Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro da ponta dos dedos.
Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre.”

Inacreditável!

Tirei daqui: “Cisnes selvagens”, de Jung Chang, Quetzal Editora, 1995
Fotos da net.

04 outubro, 2016

19º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


217-(1929?)
“A solidão desola-me; a companhia deprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.”

218-(1929?)
“A ideia de viajar seduz-me por translação, como se fosse a ideia própria de seduzir alguém que eu não fosse. Toda a vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo como quem já não quer fazer gestos, e o cansaço antecipado das paisagens possíveis aflige-me, como um vento torpe, a flor do coração que estagnou.
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo…”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


28 setembro, 2016

Vale a pena ler... Mario Vargas Llosa

(…)
Penso que foi em Madrid, em 1958, quando estava a fazer o doutoramento (sobre o poeta Rubén Dario) e a escrever o primeiro romance, “A Cidade e os Cães”, que tomei a decisão de estruturar a minha vida de maneira a poder dedicar-me à escrita. Foi nesse momento que decidi consagrar a maior parte do meu tempo e da minha energia a escrever. Porque essa é a única forma de ser-se um escritor e não a caricatura de um escritor.
Portanto, acredita no trabalho.
Por uma razão muito simples: porque eu não tenho facilidade para escrever, preciso de trabalhar muito para poder acabar um livro. Há escritores que se sentam e para eles tudo flui. Não é o meu caso. Eu tenho que refazer, penar, reescrever. Por isso, preciso de uma grande disciplina.
(…)
Ouvindo-o falar, percebe-se que Mario Vargas-Llosa, apesar de ter escrito uma trintena de livros, não é nem nunca foi um homem fechado na sua obra, na sua literatura. É importante para si participar do mundo, pensá-lo?
Sim, claro. A literatura vem da vida, do que nos marca, do que a memória audazmente seleciona. Tudo é matéria-prima. No imaginário popular o Nobel significa o fim de um escritor. Um fim glorioso, mas um fim. Pensa-se que depois disso não há nada, que o escritor está morto. Eu tentei combater isto desde o princípio, não parando de escrever, de viajar, de pensar a realidade. Não me tornando na estátua em que o Nobel por vezes transforma os escritores.”

Excerto da entrevista concedida a Luciana Leiderfarb, publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 24 Setembro 2016
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)

27 setembro, 2016

Vale a pena ler... Arturo Pérez-Reverte


Por que razão um homem que viajou por todo o mundo como repórter prefere, como temas dos seus romances, a História à actualidade?
A História permite-nos compreender melhor o presente. O novo não é mais do que o passado que já esquecemos. Tudo já aconteceu. Quem não leu a Guerra de Tróia não compreende Sarajevo, quem não leu Xenofonte não compreende a guerra dos mercenários em Angola, em 1978. Sem História somo órfãos e incapazes de compreender. Por isso uso nos meus romances a História como mecanismo de compreensão, como chave para o presente.
(…)
Acha que essa vida aventurosa, como a de uma personagem dos seus próprios romances, contribui para o êxito? Ao fazer com que o leitor se projecte no escritor como alguém que tem uma vida apaixonante?
A minha vida não é apaixonante por ser escritor. O que torna uma vida apaixonante são as viagens que fizemos, as aventuras que vivemos. Os livros são apenas um resultado disso.
Mas a literatura está em crise…
Eu não estou em crise.
Qual é a sua explicação para isso?
Às vezes pego num livro e penso: este tipo, para que escreve ele? A quem importa saber que ele se levantou de manhã, que tem uma vida triste, que a mulher o deixou, que o seu filho é drogado, que se sente asfixiado pela vida. Para isso, não vale a pena ler. Basta olhar em volta. O que eu quero é que me contem histórias interessantes, que me façam reflectir, pensar, sonhar. Que mudem a minha vida. Se quando terminar a leitura de um livro a minha vida não tiver mudado para melhor, ou é um mau livro ou eu sou um mau leitor. Um livro que não muda o olhar do leitor é uma merda de livro. E o mundo está cheio de merda de livros que não mudam nada. São apenas fruto da vaidade onanista de autores que não têm nada para dizer.
(…)
A literatura é para todos?
Sim.
Mas a maioria não lê.
Não lê porque não sabem como é bom ler. Porque não se educa para a leitura. Os planos de estudos são feitos por gente que não lê e que não sabe o que dar às crianças para ler. Mas quando uma pessoa encontra algo de que gosta…
(…)

Excerto da entrevista concedida a Paulo Guerra, publicada no jornal Público de 21 Setembro 2016.
Vale a pena ler na íntegra.

(Foto da net)

25 setembro, 2016

"Cisnes selvagens" - Jung Chang


“Jian-xin-bi-xin” – Imagina que o meu coração é o teu coração!
Confúcio

“Cisnes selvagens” é o chamado “dois em um”: fascinante romance autobiográfico e precioso documento histórico.
Isto, porque cruza
- a história verdadeira de três mulheres, da mesma família, marcadas pelas dramáticas mudanças políticas, sociais e culturais dum tempo em que na China cada dia era uma batalha só para sobreviver; 
- com a história tumultuosa da China do século XX - o derrube do Império Manchu e formação da república dos senhores da guerra (1911); a invasão da Manchúria pelo Japão (1931); a ocupação japonesa (1938-45); a proclamação da República Popular (1949); a Reforma Agrária (1950); a Revolução Cultural (1966), a violenta ditadura de Mao,  que perseguiu, escravizou e desrespeitou três gerações de chineses.
As mulheres, poderosas, lutadoras, corajosas, são a própria Jung Chang (n. 1952), a mãe (n. 1931) e a avó materna (n. 1909).
Nada falta nesta revelação de Jang Chang. Nem uma  árvore genealógica, uma cronologia da história da família e do país; nem fotografias íntimas e públicas, legendadas e datadas.
A sinopse perfeita e exacta, cativa-nos e de imediato queremos ler o livro.
Foi o que aconteceu comigo e o que acontecerá consigo. Tenho a certeza.
“Quando a avó de Jung Chang nasceu, em 1909, a China era uma sociedade feudal. Os seus pés foram ligados, como era hábito nesse tempo e, aos quinze anos, foi dada a um general como concubina. Durante anos viveu virtualmente prisioneira de criadas que a espiavam e do «marido» quase sempre ausente até que, em 1932, o general morreu e ela regressou à casa familiar com a filha ainda criança.
Essa filha cresceu na Manchúria sob ocupação japonesa e russa. Quando a guerra civil eclodiu entre os comunista e o Kuomintang de Chang Kai-Check, tornou-se uma activista no movimento clandestino, arriscando a vida para fazer passar informações através dos postos de controlo nacionalistas para os comunistas que sitiavam a sua cidade. Foi presa e posta perante um pelotão de fuzilamento e viu cair morto o homem que estava ao eu lado. Depois de libertada apaixonou-se por um jovem guerrilheiro que partilhava o seu entusiasmo pela causa comunista. Com o triunfo de Mao, tornaram-se altos funcionários, ajudando a lançar uma revolução social como o Mundo nunca vira.
Jung Chang, sua filha, passou a infância nos círculos privilegiados da elite comunista chinesa. Após um breve período nos Guardas Vermelhos, a selvajaria e o poder destruidor da Revolução Cultural levaram-na a questionar o próprio Mao, uma atitude inimaginável num país dominado pelo terror e completamente fechado a qualquer informação sobre o mundo exterior. Os pais de Jung Chang foram denunciados, presos e mandados para campos de trabalho distantes. O pai foi progressivamente levado à loucura e à morte. Ela própria, ainda adolescente, foi exilada para o coração dos Himalaias e trabalhou como camponesa e «médica dos pés descalços».”
Em 1978 Jung Chang consegue uma bolsa para estudar na Grã-Bretanha. Fizeram-se festas para celebrar, e derramaram-se muitas lágrimas de alegria. Ir para o Ocidente era uma coisa enorme. A China mantivera-se fechada durante decénios, e as pessoas sentiam-se sufocadas pela falta de ar. Fui eu a primeira da minha universidade e, tanto quanto sei, a primeira de Schuan (que tinha na altura uma população de cerca de noventa milhões) a receber autorização para estudar no Ocidente, desde 1949.

“Cisnes selvagens”  desvenda um período trágico da História da China.
É um livro longo, duro e amargo, mas empolgante e cativante.
Difícil de contar, é obrigatório ler.
Eu comprei-o  em 1995, emprestei-o, perdi-o, recuperei-o, li-o agora, compulsivamente.
É apaixonante!

Cisnes selvagens, de Jung Chang
Tradução de Mário Dias Correia
Quetzal Ed., 1995
517 págs.