31 março, 2015

Vale a pena ler... Valter Hugo Mãe

Cuidar dos pais

A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.

Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.

Excerto da crónica de Valter Hugo Mãe, publicada na revista 2, do jornal Público de 29 Março 2015.
Vale a pena ler na íntegra.

(Pintura de Afonso Pinhão Ferreira - foto tirada da net)

27 março, 2015

"O amante" - Marguerite Duras

Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela diz-lhe que também ela está só.
Ela tem quinze anos e meio e é pobre. Ele tem vinte e sete e é rico.
Ela possui um rosto liso, que pinta para esconder as sardas, um corpo delgado e seios de criança. Ele possui no rosto o mistério de todos os orientais.
Olham-se pela primeira vez na barcaça do Mékong, em direcção a Saigão.
Ela usa um vestido de seda natural, quase transparente, calça sapatos de saltos altos dourados, e tem na cabeça um chapéu de feltro de homem. Ele usa um fato de seda claro.
Ela, da amurada contempla o rio. Ele fuma junto da limusina preta.
Deslumbram-se.
Ele aproxima-se, sorri e oferece-lhe um cigarro. Ela diz-lhe que não fuma.
Depois daquele encontro na barcaça ele passou a esperá-la todos os dias à porta do liceu, para a levar ao pensionato.
Uma tarde despem-se no quarto de um estúdio escuro no sul da cidade.
Ele diz que a ama como um louco. Ela não lhe responde. Poderia responder-lhe que não o ama. Não diz nada.
Ele treme. Ela sente um leve medo.
Ele pergunta se doeu. Ela diz que não.
Os beijos pelo corpo fazem chorar. Dir-se-ia que consolam. Em família não choro, diz ela.
Em 1984, Marguerite Duras recupera da memória este amor da adolescência e a relação difícil e complicada com a mãe e os irmãos e narra-as em "O Amante".
Sem pudor, escreve sobre a descoberta do amor e da sexualidade, sobre um ano e meio de encontros com o amante sofredor. Amante que anos depois da guerra, em Paris, liga para a menina branca, agora feita mulher, e diz-lhe que ainda a amava, que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até à morte.
Sem medo, escreve sobre a fragilidade dos laços familiares.
Nunca bom dia, boa noite, bom ano. Nunca obrigado. Nunca falar. Nunca necessidade de falar. Tudo fica mudo, longe. É uma família de pedra, petrificada numa espessura sem qualquer acesso. Todos os dias tentamos matar-nos, matar. Não só não nos falamos como não nos olhamos (…) Estamos juntos numa vergonha de princípio que é ter de viver a vida.
É verdade o que diz Marguerite Duras neste romance? Isso pouco importa.
Verdade ou ficção, o que importa mesmo é que gostei de o ler em Maio de 1993 e de o reler em Março de 2015.
Recomendo!

Marguerite Duras- pseudónimo de Marguerite Donnadieu - nasceu em 1914 na Indochina, então uma colónia francesa. Aos dezoito anos vai para Paris estudar Direito. Durante a guerra toma parte na Resistência e publica os primeiros livros (Les Imprudents, 1943 e La vie tranquile, 1944). Escritora, dramaturga e cineasta, é considerada uma das principais vozes femininas da literatura europeia do Século XX. Faleceu em 1996. 

O Amante, de Marguerite Duras
Ed. Difel, 1992
Tradução de Luísa Costa Gomes e Maria da Piedade Ferreira
98 págs.

24 março, 2015

"O livro da via e da virtude" - Lao Tse


O que está bem plantado não pode ser arrancado,
O que está bem ligado não pode desunir-se.
É graças à virtude que filhos e netos
celebram escrupulosamente o culto dos antepassados.

Cultivada em si mesmo
a sua virtude será autêntica;
cultivada na sua família
enriquecerá;
cultivada na sua aldeia
crescerá
cultivada no Estado
será florescente;
cultivada no mundo
tornar-se-á universal.

Observamos os outros por nós próprios;
as famílias, pela nossa família;
as aldeias, pela nossa aldeia;
os Estados pelo nosso Estado;
todo o mundo, por este mundo;
Como posso saber como vai o mundo?
Por tudo o que acaba de ser dito.

Inspirador de diversas correntes do pensamento religioso e filosófico, "Tao Te King" (O Livro da Via e da Virtude) é considerado o mais antigo livro da filosofia chinesa.
Os poemas seguem a tradição chinesa – o número das palavras é limitado, mas as ideias sugeridas são inumeráveis – e terão sido escritos por Lao Tse (Velho mestre), entre 350 e 250 a.C.
O livro chegou ao Ocidente apenas no Século XVIII. Hoje é um dos livros mais traduzidos no mundo.
Às minha mãos chegou em 1986, no dia do meu aniversário. Exultei de contentamento.
Anos depois, dei pela sua falta. Entristeci.
Devolveram-mo agora, velhinho. Perdoei. E sorri.

Um aparte: 
Sabe qual é o livro mais traduzido no mundo? 
Os entendidos dizem que é Odisseia, um poema épico da Grécia Antiga.
A obra é atribuída a Homero, que terá vivido no Século VIII a.C. e narra dez anos de aventuras de Ulisses, o grande guerreiro grego.

20 março, 2015

"Uma casa na escuridão" - José Luís Peixoto

A minha mão direita tremeu durante todo o mês da noite e, disso, só o sofrimento, só a ansiedade. E não conseguia escrever. Escrevia pouco. Pensava muito. Dava muitas voltas. E escrevia uma palavra e um ponto final: palavra. Passava horas para me obrigar a escrever uma palavra e, depois, passava horas a repeti-la, encantado pela sua tristeza, pois todas as palavras eram tristes.
Bem, também eu não consigo escrever. Escrever sobre o que li.
Por mais que pense, por mais que procure, não encontro as palavras certas.
Dias depois de terminar a leitura das 253 páginas de texto denso, continuo atordoada com a força das palavras do escritor - que vive numa casa envelhecida e escura, com o pai (que escreve sonetos; que se fecha no quarto com a escrava madalena e fazem sons de homem e mulher; que mata a amante para não morrer sozinho), com a mãe (que sabia e fingia que não sabia; que perdeu o interesse pela vida como se perdesse a própria vida), a escrava miriam e muitos gatos de várias cores.
Escritor que fecha os olhos e vê no negro absoluto a mulher amada. A mulher mais linda do mundo. A mulher que vive dentro dele. A mulher com quem fala através da escrita.
Escrita de histórias arrebatadoras sobre a vida, os sonhos, o amor, a felicidade, a solidão, a tristeza, o medo, o terror, o sofrimento, o mal, a morte.
Histórias vividas num tempo que passa devagar. Mas, devagar, o tempo transforma tudo em tempo. O ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. Os assuntos que julgávamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. Por si só, o tempo não é nada. A idade de nada é nada. A eternidade não existe e, no entanto, a eternidade existe.
Histórias mirabolantes com personagens surpreendentes: o príncipe de calicatri, o visconde de dedodida, o violinista, o ninguém, o editor, a tradutora (um dia falou-me do pai e do filho que morreram no meu romance, falou-me dos dois irmãos siameses que morreram, falou-me do homem muito velho que morreu no meu romance, daquele pai e daquele filho que eu escrevera…).
Hum! Eu já li sobre isto num outro romance…
Quem é afinal o escritor-narrador desta casa escura, para quem o silêncio era o significado das palavras muito verdadeiras?
Ele ajuda:
O meu nome: três palavras escritas num papel: três palavras: o nome do meu avô paterno, o nome do meu avô materno e o nome de família do meu pai.

Não foi  tarefa fácil ler este romance. 
É sinistro, escuro, triste… É luminoso, belo e viciante… É uma tempestade de ternura.
«Primeiro estranha-se, depois entranha-se».
Por favor, leia!

Uma casa na escuridão, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2002
253 págs.

17 março, 2015

Amor… em “Uma casa na escuridão”, de José Luís Peixoto


"Amor. Amor. Amor, gostava de dizer esta palavra até gastá-la ainda mais. Amor, gostava de dizer esta palavra até perder ainda mais o seu sentido. Amor. Amor. Amor, até ser uma palavra que não significa nem sequer uma ilusão, uma mentira. Amor, amor, amor, nem sequer uma mentira, nem sequer um sentimento vago e incompreensível. Amor amor amor, até ser nem sequer uma palavra banal, nem sequer a palavra mais vulgar, nem sequer uma palavra. Amoramoramor, até ao momento em que alguém diz amor e ninguém vira a cabeça para ouvir, alguém diz amor e ninguém ouve, alguém diz amor e não disse nada."

13 março, 2015

"Na rua das lojas escuras" - Patrick Modiano

Quem sou eu?
A pergunta não é minha, é de Guy Roland, personagem-narrador de “Na rua das lojas escuras”.
Quem é Patrick Modiano?
Esta fiz eu, quando ouvi o nome do galardoado com o Prémio Nobel de Literatura 2014.
Sim, porque até àquele exacto momento nunca ouvira falar de Patrick Modiano. (Falha minha ou das editoras portuguesas, mas isso não interessa para aqui).
Surpreendida, curiosa (e triste por ver de novo o meu escritor preferido afastado), procurei nas livrarias razões que justificassem a atribuição do prémio ao francês desconhecido. E encontrei vários romances. E decidi lê-los todos. E comecei por "Na rua das lojas escuras" (1978), porque gostei do título.
Trata-se de um policial. Mas um policial diferente. Um policial onde um detective privado não investiga um crime, mas o seu próprio passado.
Começa assim, pela voz de Guy:
Não sou nada. Nada mais que uma silhueta clara, naquela noite. Na esplanada de um café. Esperava que parasse a chuva…
Depois, sabemos que Guy acabou de perder o emprego numa agência de detectives privados especializada na recolha de «informações mundanas».
Naquela noite, o dono e fundador da C.M. Hutte - Investigações particulares, fechou pela última vez a porta da agência. Decidira reformar-se.
Foi por aquela mesma porta que entrou, há oito anos atrás, um homem sem nome em busca de testemunhos ou vestígios do seu passado. Uma amnésia repentina deixara-o vazio, sem identidade.
O detective que o ouviu, o próprio Hutte, comoveu-se com a história e arranjou-lhe uma nova identidade e convidou-o para trabalhar com ele, na agência.
Meu caro «Guy Roland», a partir de agora, não olhe mais para trás; pense no presente e no futuro. Proponho-lhe que trabalhe comigo…
E trabalharam juntos mais de oito anos.
Na despedida, Hute perguntou:
- Guy, o que é que vai fazer?
- Eu? Ando a seguir uma pista.
- Uma pista?
- Sim. Uma pista do meu passado…
- Sempre pensei que um dia você havia de tornar a encontrar o seu passado… mas sabe, Guy, pergunto-me se valerá realmente a pena…
Na despedida entregou-lhe uma chave da Agência.
- Pode lá ir de vez em quando. Gostava muito que o fizesse. E dê-me notícias… sobre o seu passado.
Se vale ou não a pena investigar só a Guy interessa e ele vai mesmo seguir a pista do seu passado.
O que descobre?
Claro que não vou divulgar, mas você pode investigar nas 175 páginas seguintes.
E se chegar à página 185, a última, verá que a Guy só falta voltar à sua antiga casa, em Roma, na rua das Lojas Escuras, nº 2.

Gostei? Não!
Devia ter escolhido outro romance? Talvez!
O que vou fazer com os restantes? Lê-los, claro!
E esperar que histórias confusas e entediantes fiquem todas na rua das lojas escuras.
Ufa!

Na rua das lojas escuras, de Patrick Modiano - Prémio Nobel de Literatura, 2014
Tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira
Ed. Relógio d’Água, 1988
185 págs.

10 março, 2015

"Poemas completos" - Mário de Sá-Carneiro


COMO EU NÃO POSSUO
Olho em volta de mim. Todos possuem –
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh’a alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo…
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d’alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo…
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?

06 março, 2015

"O meu irmão" - Afonso Reis Cabral

Quando não há solução, enfrentamos a realidade, fazemo-nos homens. Adaptamo-nos. Sobrevivemos. Vencemos, lutamos, ou pelo menos somos derrotados em grande no combate que é a vida. Com o Miguel não se passa isso, ele mantém-se no mesmo estado de espírito, à semelhança de um pássaro de asa partida que ainda salta para voar. Salta e magoa a asa.
É lindo este romance.
A história, contada em saltos entre presente e passado, prendeu-me logo no primeiro parágrafo: Isto vai passar-se no Tojal. O Tojal é perto de Arouca e longe de tudo o resto. Depois, foi ler, quase de seguida, as 365 páginas de escrita fluída e graciosa. E fiquei boquiaberta, encantada e envergonhada.
Boquiaberta com os vinte e quatro anos de idade de Afonso Reis Cabral. Vinte e quatro!
Encantada com a forma como ele aborda um tema sério e delicado, sem cair no excessivo sentimentalismo.
Envergonhada por saber tão pouco sobre a Síndrome de Down.
-Olha para mim, meu parvalhão. Como te chamas?
- Miguel.
- E eu?
- Mano.
- Eu sou teu irmão, não me chamo irmão.
- Sei.
- Sabes o quê?
E nisto a língua no discurso como faca na manteiga.
- Sei que tu és meu irmão e que não te chamas assim, estava a brincar.
Recorro à sinopse, concisa e perfeita, para fugir à vontade louca de citar, citar, citar.
“Com a morte dos pais, é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos que nasceu com síndrome de Down. É então que o irmão – um professor universitário divorciado e misantropo – surpreende (e até certo ponto alivia) a família, chamando a sai a grande responsabilidade. Tem apenas mais um ano do que o Miguel, e a recordação do afecto e da cumplicidade que ambos partilharam na infância leva-o a acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da aridez em que se transformou a sua vida e redimi-lo da culpa de tantos anos de afastamento. Porém, a chegada de Miguel traz problemas inesperados e o maior de todos chama-se Luciana.”
Mas… sem divulgar muito (para não estragar) sempre vou dizendo que:
- trata da relação complicada de dois irmãos parecidos de modos diferentes. Miguel, claro, mongolóide e o irmão mais velho (o narrador, sem nome) que nascera inteligente e perfeito;
- há, lá pelo meio, uma belíssima e triste história de amor. O amor de Miguel por Luciana, uma apanhadita do cérebro que conhece numa aula de pintura. Um amor em carne, amor em força bruta, amor à flor da pele. Um amor tão intenso que torna difícil perceber o fim de um e o começo do outro. 
Um amor que  o irmão mais velho não entende nem aceita e teima em contrariar. Atormentado, insiste na pergunta,
- Gostas de mim?
mesmo sabendo que a resposta é sempre a mesma,
- Da Luciana, da Luciana.
Um dia, Miguel e Luciana fogem.
E mais não digo. Leia!

Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados mais diferente da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro da vida e o outro não.

O Miguel não pensava na vida – ele era a vida, respirava-a com naturalidade, enquanto eu ansiava por fazê-lo.
Que belo e corajoso primeiro romance. Venham mais!

O meu irmão, de Afonso Reis Cabral, Prémio Leya, 2014.
Ed. Leya, 2014
365 págs.

03 março, 2015

7º Está num livro de José Saramago. Sabe qual é?

“… a morte decidiu ir à cidade. Despiu o lençol, que era toda a roupa que levava em cima, dobrou-o cuidadosamente e pendurou-o nas costas da cadeira onde a temos visto sentar-se. Exceptuando esta cadeira e a mesa, exceptuando também os ficheiros e a ganha, não há mais nada na sala, salvo aquela porta estreita que não sabemos para onde vai dar. Sendo aparentemente a única saída, seria lógico pensar que por ali é que a morte irá à cidade, porém não será assim. Sem o lençol, a morte perdeu outra vez altura, terá, quando muito, em medidas humanas, um metro e sessenta e seis ou sessenta e sete, e, estando nua, sem um fio de roupa em cima, ainda mais pequena nos parece, quase um esqueletozinho de adolescente. (…) Realmente, não há nada no mundo mais nu que um esqueleto.”

Se já leu, é fácil chegar lá. Vire as páginas. Releia. Deslumbre-se.
Se acertar, ganhará... um enorme aplauso!

O título do livro nº 6 é:
O homem duplicado”, Editorial Caminho, 2002