31 outubro, 2015

"Os emigrantes" - W. G. Sebald

... a dor moral é praticamente infinita. Quando se julga ter chegado ao último limite, há sempre novos tormentos. Vai-se de abismo em abismo. (em Max Feber)
Neste livro de W. G. Sebald, que reúne quatro histórias de emigrantes ou exilados judeus do século XX, cuja vida foi abalada pelas dores da separação, da morte, das saudades do país natal, um narrador não identificado (duplo do escritor?), também emigrante-exilado, resgata do esquecimento homens extraordinários com quem se cruzou em momentos decisivos da sua vida. Homens que nunca superaram a perda, a fuga.
Para o fazer, ele organiza, investiga, viaja, ouve, recorda, analisa: factos empolgantes, emocionantes e sofridos das suas vidas; a época; memórias pessoais, de amigos e de familiares; álbuns de fotografias; diários; agendas; postais ilustrados e objectos pessoais. Depois, escreve quatro belíssimas histórias, que enriquece com muitas e interessantes fotografias.
1ª - Dr. Henry Selwyn  
(Inglaterra)
Colocado em serviço na cidade de Norwich, em Setembro de 1970, o narrador e a mulher alugam parte de uma casa em Hingham, propriedade do casal Henry e Hedi Selwyn.
Ex-médico cirurgião e ex-praticante entusiasta de escalada, o Sr. Selwyn, após alguma hesitação, começou a falar-nos do tempo que, antes da Primeira Guerra Mundial, tinha passado em Berna, depois de terminar o curso básico de medicina. E da sua grande amizade com Johannes Naegeli, o guia de montanha que desapareceu num acidente. E sobre a guerra, e o primeiro ano de serviço na Índia e o casamento com Heidi, a quem escondi durante muito tempo as minhas origens, confidencia.
De confidência, em confidência, conta que aos sete anos - ainda como Hersch Seweryn - saiu com a família da pequena aldeia lituana onde nasceu, rumo a Nova Iorque, mas o cargueiro acabou por atracar em Londres, e foi lá que cresceu. E sobre os anos da Segunda Guerra, o afastamento da mulher, a perda dos clientes, o abandono do consultório.
Henry Selwyn acabou por se suicidar com a arma que comprou antes da partida para a Índia.
2ª - Paul Bereyte
(França)
Em Janeiro de 1984 chegou-me… a notícia de que Paul Bereyter, com quem eu fiz a escola primária … uma semana após ter feito 74 anos… foi deitar-se diante do comboio.
A notícia necrológica falava dos seus serviços como docente, do seu amor à música, e de ter sido impedido pelo Terceiro Reich do exercício da profissão.
Paul era filho de um meio judeu, consequentemente, apenas três quartos ariano. Nasceu em Frankfurt, de onde aos sete anos partiu para França com o pai, historiador de arte.
Em 1939, profundamente alemão, voltou à Alemanha. Serviu seis anos na artilharia motorizada. Esteve na Polónia, na Bélgica, em França, nos Balcãs, na Rússia e no Mediterrâneo e há-de ter visto mais do que é possível guardar nos olhos ou no coração.
3ª - Ambros Adelwarth
(América)
Quase não me lembro do meu tio-avô Adelwarth.... vi-o apenas uma vez, no Verão do ano de 1951… num encontro de familiares emigrantes americanos... nada me chegou aos ouvidos sobre a sua morte dois anos mais tarde, e muito menos sobre as circunstâncias em que ocorreu.
Ambros Adelwarth, nasceu em 1866, em Gropchts. Aos catorze anos abandonou a terra natal e foi trabalhar em hotelaria, para Montreau. Aprendeu rapidamente o francês, o inglês e um japonês.
Em 1905, mudou-se para Londres e anos depois partiu para a América.
Na América trabalhou em casa dos Solomon, uma das mais ricas famílias de banqueiros judeus de Nova Iorque. Foi criado de quarto de Cosmos, o filho dos Solomon, e seu companheiro de muitas viagens pelo mundo. Quanto Cosmos sucumbe a uma doença mental, Ambros tornou-se mordomo da família.
A seguir ao Natal de 1952, Ambros caiu numa depressão profunda. Morreu num asilo psiquiátrico.
Recordar... parece-me muitas vezes uma espécie de estupidez. Faz-nos a cabeça pesada, tonturas, como se não olhássemos para trás pelas vias do tempo volvido, mas caíssemos ao chão de uma dessas torres que se perdem nas nuvens, escreveu no livro de memórias.
4ª - Max Ferber
(Manchester, Inglaterra, 1966)
Num edifício abandonado de Manchester, o narrador descobre Aurach, um pintor que ali trabalha desde o fim dos anos quarenta.
Max Ferber, ou melhor, Friedrich Maximilian Aurach, nasceu em Munique. Em 1939, com quinze anos, partiu para Inglaterra, para fazer belas artes. Nunca mais voltou à Alemanha.
O pai, que foi adiando a saída da Alemanha mesmo depois de ser obrigado a entregar a gerência da sua galeria de arte a um ariano, foi levado de comboio para Riga, em Novembro de 1941, onde foi depois morto.
Pensar na Alemanha é como ter na cabeça a loucura. E provavelmente nunca mais voltei à Alemanha por medo de ver confirmada essa loucura., confessa ao narrador.

Tudo isto é verdade, ou não passa de ficção?
Nunca conseguiremos saber. Winfred George Sebald  faleceu tragicamente em Dezembro de 2001, vitimado por um  ataque cardíaco ao volante do seu automóvel.
Acredite, estas histórias "leem-se, olham-se e sentem-se". Na alma.
Leia!

Os Emigrantes, de W. G. Sebald
Tradução de Telma Costa
Ed. Teorema, 2005
259 págs.

27 outubro, 2015

Com os olhos vagando... em "Viagens na minha terra", de Almeida Garrett


Com os olhos vagando por este quadro imenso e formosíssimo, a imaginação tomava-me asas e fugia pelo vago infinito das regiões ideais.

Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espectáculos da Natureza é dos prazeres que Deus concedeu às almas de certa têmpera. “

(Foto de Manuel Antunes, tirada na estrada  Álvaro - Oleiros, distrito de Castelo Branco.)


23 outubro, 2015

"O livro das emoções", de Laura Esquivel

Se as emoções se radiografassem, talvez nos bastasse enternecer-nos com o esforço de defesa e insegurança dos verdadeiramente sinceros e pudéssemos, ao mesmo tempo, cuidar dos mentirosos, ou estivéssemos capacitados para nos compadecermos dos enganados e lutássemos contra aos injustos. Talvez vivêssemos um pouco mais como somos verdadeiramente.
Neste pequeno livro de Laura Esquivel, há uma espécie de diálogo entre emoção e pensamento, que o converte num manifesto a favor de uma nova forma de olhar para o ser humano.
Será que a alegria nos cura? Que a tristeza nos põe doentes?
Por que razão, na nossa época, reinam a depressão e o stress?
A memória é um armazém pessoal de emoções?
Há pessoas, livros, filmes que nos agarram o coração, e outros que nos provocam repulsa. Porquê?
O que nos leva a tirar uma fotografia da caixa de recordações? Ou a ler a primeira carta de amor que recebemos? Ou a ir buscar ao baú das recordações a rosa murcha que nos deram naquele baile inesquecível?

Este livrinho ajudá-lo-á  a encontrar respostas para estas e muitas outras perguntas pertinentes.
E a perceber - que a vida não é mais que um conjunto de recordações, imagens, risos, lágrimas, através dos quais adquirimos consciência daquilo que somos.
E a conseguir - dizer às pessoas que nos rodeiam aquilo que significam para nós, dar um abraço a um amigo perdido, partilhar uma tarde de riso com os nossos filhos, contemplar uma chuva de estrelas, dar um beijo de amor ao nosso companheiro, amar, amar, amar.
Leia, leia!

O livro das emoções, de Laura Esquivel
Tradução de Carlos Sousa de Almeida
Ed. ASA, 2003
90 págs.

20 outubro, 2015

2º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


11- (1913?)
“Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos.”

12 -(1913?)
“É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.”

15- (1937?)
“O dinheiro é belo, porque é uma libertação. (…)
Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam – compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir.”

Leia (tudo) e… deslumbre-se!


18 outubro, 2015

"Sinais de fogo" - Jorge de Sena

Sinais de fogo, os homens se despem,
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
Corria o ano de 1964 quando Jorge de Sena iniciou a escrita de um relato da vida portuguesa no período de 1936 a 1959, tendo por base as experiências de um narrador.
Lamentavelmente, não viveu o tempo necessário para completar tão ambiciosa obra. “Sinais de fogo”, publicado postumamente em 1979, não vai além do verão de 1936.
Geograficamente a história desdobra-se por Lisboa (56 páginas no início, outras tantas no final) e pela Figueira da Foz. O tema central é a adolescência, a descoberta do amor e do sexo, o despertar para a  política. As personagens são muitas e bem construídas.
Jorge, é o narrador do romance. Filho único de uma família da média burguesia de Lisboa, aluno empenhado, um bom amigo. Nas primeiras páginas ele apresenta os amigos Puigmal e Mesquita. Frequentam juntos a faculdade, são colegas desde o 6º ano do liceu. Dos três, Ramos Berenguer de Cabanellas Y Puigmal, é o mais extrovertido, mais endiabrado nas aulas, mais extravagante e…o menos empenhado no estudo. Puigmal vivia num mundo seu, onde não penetravam as ideias dos outros. Mesquita, o bom aluno, era o sempre reeleito chefe de turma, pelo prestígio das suas aventuras amorosas.
Os três eram livres para vagabundear ociosamente ( e disso ele nos dá conta) e só à aproximação dos exames de frequência se fechavam em orgias de estudo contínuo.
A segunda parte do romance começa com Jorge a viajar sózinho para a Figueira da Foz. É usual passar lá os meses de verão, em casa do tio Justino. Lá vai encontrar os amigos de verões anteriores. 
À chegada à estação da Figueira, estranha o comportamento de um grupo de veraneantes espanhóis agitados, aos gritos, a querer regressar rapidamente a Espanha. O que se passa?
Sabe depois, que em Espanha rebentou uma revolução e o seu tio Justino esconde em casa dois espanhóis revolucionários e prepara-lhes a fuga para Espanha.
O verão promete... as férias não se ficarão pelo convívio com os amigos Rodrigues, Rufinho, Ramos, Carlos, nem pela paixão desmesurada por Mercedes, nem pelas «pândegas de arromba».
Sobre estes amigos, diz Jorge: … todos eram meus amigos de Verão, que eu mal conhecia. (…) O não ter-se nada em comum, senão as circunstâncias que nos juntam, é que é a verdadeira sujeição mútua. Muito maior e mais profunda que a que me ligava à família, aos companheiros de sempre, a tudo o que sempre tivera um lugar marcado e habitual na minha vida. Tudo isto não é a nossa vida, mas o pretexto em que nos refugiamos, para não sermos atacados por ela.
No verão de 1936 Jorge vai viver experiências transformadoras ao iniciar-se no amor erótico, nos braços de Mercedes, na poesia, na política. E vai, também, envolver-se em situações absurdas, violentas e perigosas. 
Chegaram os tempos de mudança.
A vida de ninguém estava em condições de continuar a ser uma paz podre. Não seria também uma paz limpa. Era uma guerra, com tudo o que ela implica de podridão e de lixo.
Segue-se o regresso, antecipado, a casa dos pais… era-me estranha, e sê-lo-ia muito mais, depois de tudo o que havia acontecido, mesmo que eu me esquecesse de tudo, e me tornasse perfeitamente indiferente ao que mo lembrasse.
E o refúgio na poesia... porquê e para quê? Porque me sentia completamente só e necessitava de silêncio e, em consequência, precisava de palavras que dissessem não dizendo?

Você também vai necessitar de silêncio para interiorizar esta história.
Aviso que não é fácil de ler. A escrita é complexa e densa. E demasiado descritiva. E demasiado desbragada, em certos momentos. Pare, se necessário, mas não desista. 
Leia até ao fim.. este romance maior.

Jorge Cândido Alves Rodrigues Telles Grilo Raposo de Abreu de Sena foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário.
Nasceu em Lisboa, em 1914 e faleceu na Califórnia, em 1978.

Sinais de fogo, de Jorge de Sena
Edições 70, 1988
526 págs.

16 outubro, 2015

Vale a pena ler ... "Conta-me histórias..."


A atividade cerebral dos mais novos aumenta quando ouvem histórias de embalar, garante um estudo científico de John S. Hutton, investigador do Centro Médico Hospital Infantil de Cincinatti, EUA.

Crescer com livros, ler em voz alta para as crianças são atos que ajudam ao desenvolvimento da linguagem e ao sucesso escolar, está comprovado.

Para o psicólogo clínico Eduardo Sá, «o sistema nervoso funciona como um músculo que precisa de ser estimulado, sob o risco de, ao não suceder assim, atrofiar. (…) porque o acesso à palavra nos permite vestir em palavras aquilo que sentimos, crianças que melhor verbalizam, podem tornar-e mais felizes. (…) As histórias juntam imagens e palavras, ajudam a pensar. Crianças que mais precocemente acedem às histórias são mais aptas para a matemática, para a língua materna, para a representação, e para a relação. Mais histórias significa crianças mais saudáveis e crianças mais inteligentes».”


Excerto da crónica de Katya Delimbeuf, publicada na “E”, revista do jornal Expresso de 10 Outubro 2015.
Vale a pena ler na íntegra.

13 outubro, 2015

"Primaveras românticas" - Antero de Quental


Versos

As flores que nossa alma descuidada
Colhe na mocidade com mão casta,
São belas, sim: basta aspirá-las, basta
Uma vez, fica a gente enfeitiçada.

Nascem num prado ou riba sossegada,
Sob um céu puro e luz serena e vasta;
Têm fragância subtil, mas nunca exausta,
Falam d’Amor e Bem à alma enlevada…

Mas as flores nascidas sobre o asfalto
Dessas ruas, no pó e entre o bulício,
Sem ar, sem luz, sem um sorriso do alto,

Que têm elas, que assim nos endoidecem?
Têm o que mais as almas apetecem…
Têm o aroma irritante e acre do Vício!

09 outubro, 2015

"Contos do nascer da terra" - Mia Couto

Peguei no livro, procurei o índice, atentei nos títulos dos contos.
Depois, contei-os e o empolgamento foi imediato: tantos! Bom de mais!
Então, iniciei a leitura do primeiro “O não desaparecimento de Maria Sombrinha”, e logo fiquei presa daquela prosa poética, das palavras inventadas, do realismo fantástico.
Já muita coisa foi vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino. (…) Deu-se o caso numa família pobre, tão pobre que nem tinha doenças. Dessas em que se morre mesmo saudável. (…) Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem muito. Um dos mistérios dos lares famintos é falecerem tantos parentes e a família aumentar cada vez mais.
Terminado o primeiro, avancei para o segundo, depois para o terceiro “A última chuva do prisioneiro”:
Antigamente, valia a pena ser preso. O cantinho da prisão nem era mau, comparado com o mundo que nos cabia, lá fora. Falo sério. Maioria do que aprendi foi na prisão. Ler, escrever, foi na prisão que me letrinhei. Minha vida era uma roda-ronda entre roubo e grades. Me prendiam: era um consolo cheio de sossego. Lá fora ficava o mundo, mais suas doenças, suas nauseabundâncias.
Agora o calabouço é um lugar definhado, de não valer a pena. Esse mundo torto já entrou na prisão. A cadeia se infernou, dá vontade só de escapar. Porque aqui dentro nos roubam mais que fora. Aqui somos roubados por polícia, roubados por ladrões. Já nem podemos estar livres na cadeira. Neste lugar nem os mortos estão seguros. Já perdi a escolha, doutor: a prisão me mata, a cidade não me deixa viver. A feitura deste mundo já não tem dentro nem fora.
e não mais parei de ler estes contos/retratos do povo simples moçambicano, da sua identidade cultural, da sua forte ligação à terra.
“Velho com jardim nas traseiras do tempo”:
No Jardim Dona Berta há um banco. O único que resta. Os outros foram arrancados, vertidos em tábua avulsa para finalidades de lenha. Nesse restante banco mora um velho. Cada noite, os dois se encostam mutuamente, assento e homem, madeira e carne. Dizem que o velho já tem a pele às listas, formatadas no molde das tábuas, seu externo esqueleto.
“Os negros olhos de Vivalma”:
Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.
Esse foi o destino de Vivalma, mulher entre as mulheres, cheia de desgraça, nem o Senhor punha oração nela.
São lindos os trinta e cinco contos deste livro. E ternurentos, como “A menina sem palavra”:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos… 
Vá, leia pelo menos esta belíssima história. O fim é espantoso!
Depois... depois vai lê-las todas, seduzido pela escrita de Mia Couto. Ela tem… XICUEMBO!

Contos do nascer da terra, de Mia Couto
Ed. Caminho, 1997
245 págs.

06 outubro, 2015

1º - Excertos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa


4 - (1913?) - Nossa Senhora do Silêncio 
"Ás vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e só posso ter como sonho o pensar nos meus sonhos, folhei-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens lentas e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. (…)
Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?"

6 - (1913?) Nossa Senhora do Silêncio (?)
"A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas são falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las."

Leia (tudo) e deslumbre-se!


02 outubro, 2015

"Abraço" - José Luís Peixoto

Eu não tomo café, faz-me mal, e só em ocasiões raras aceito algum licor, por isso, após almoços e jantares, para ajudar a digerir, converso abundantemente. (O peso do tecto)
Começo por dizer que nunca li um livro como este. Nunca!
É um livro feito de abraços ternurentos, que nos enleiam da primeira à última página.
Lançado em 2011, “Abraço” reúne cento e sessenta e duas crónicas intimistas - José Luís Peixoto escreve sobre si com invulgar desassombro - publicadas ao longo de uma década (2001-2011) em revistas e jornais.
“Precisava de organizar tudo o que tinha. Não no sentido de organizar os papéis que tinha lá em casa, mas organizar a minha cabeça e para poder ter novas ideias. É muito importante tirarmos do nosso sistema o que temos para termos novas ideias.”, disse ele ao “Correio da Manhã", em Dezembro de 2011.
Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. (Impossível é não viver)
As crónicas discorrem sobre temas variados, uns mais complexos, outros mais ligeiros e estão agrupadas em três idades do autor: seis anos; catorze anos; trinta e seis anos. São todas interessantes e cativantes. E desvendam tanta coisa…
. a infância e a adolescência no Alentejo - Vale a pena nascer, crescer, vale a pena a adolescência inteira, todos os sacrifícios, vale a pena a responsabilidade, vale a pena sair pelo desconhecido e ter de estar preparado para o impossível. (Miau)
. os pais, as irmãs, a avó - A minha avó era uma mulher do campo. Passou a mocidade e a vida adulta a trabalhar no campo, na terra. Chamava-se Joaquina Pulguinhas. A minha avó escrevia cartas muito devagarinho. Com letra tremida, escrevia o nome dos netos nos embrulhos dos presentes. Em casa, viúva, reforma de trinta contos, sozinha, começou a ler livros. Não sei quanto tempo demorava a lê-los, mas sei que os lia com o esforço da atenção, palavra a palavra. (Alma)
. os filhos -  Assistirmos ao sofrimentos do nosso filho é estarmos em carne viva por dentro, é não termos pele, é um incêndio a arder no mundo inteiro, mesmo no mundo inteiro.(Acompanhante: pai)
. bibliotecas, livrarias, livros, escritores (Sophia e Saramago estão entre os muitos escritores aludidos.)
. a escrita - Quando acabei de escrever o meu primeiro romance, fechei-me em casa durante duas semanas. Nesse tempo fechado do mundo vivi cada olhar de cada personagem, cada esperança, cada angústia. Na altura era muito novo. Creio que se o tivesse feito hoje me teria suicidado no último dia dessas duas semanas, como desfecho lógico. (O cadáver de James Joyce)
. cidades, aeroportos e viagens - As primeiras viagens que fiz não se destinavam a chegar a algum lado, mas sim a fugir de qualquer coisa. Por sorte, quando se foge de qualquer coisa, chega-se sempre a algum lado. (Literatura de viagens)
. música e cinema
. tatuagens
. amor, muito amor
. vida - Uma única vida é pouco. Para se fazer aquilo que se sabe, se pode, se quer e se deve fazer é preciso deixar muitas outras coisas para trás. (Desistir)
. etc., etc., etc.
Leia, por favor.
Não “salte” nenhuma das crónicas. Leia-as todas. A última, (Manifesto branco), é um deslumbramento. 
Pureza, repito a palavra apenas pelo prazer de articulá-la. Experimenta. Se te sentires ridículo ao fazê-lo, sabe que essa é uma armadilha que deixaste que te colocassem. Ignora-a. Diz: Pu-re-za. (…)
Pureza, repito agora para que se instale e se respire. Retira a maldade até das coisas más. Se te sentires ingénuo ao fazê-lo, sabe que, uma vez mais, essa é uma armadilha que deixaste que te colocassem. Se não conseguires evitá-la, ignorá-la, aceita a ingenuidade. A ingenuidade faz o sangue circular com mais fluidez do que o cinismo. A ingenuidade desconhece o colesterol. O cinismo é hipertenso. (…)
Pureza, repete. Tu tens direito à felicidade.
Agora vai. Tens a vida à espera de abraçar-te.
Abrace você, quem tão bem escreve na nossa língua. Abrace a vida.
Ponto final.

Abraço, de José Luís Peixoto
Ed. Quetzal, 2014
655 págs.