26 junho, 2015

"Poesias completas" - António Gedeão

António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa, em Novembro de 1906 e faleceu em Fevereiro de 1997.
Licenciou-se em Ciências Físico-Químicas e em Ciências Pedagógicas.
Foi professor, pedagogo, historiador e investigador. E poeta.
Tinha cinquenta anos quando publicou o primeiro livro de poemas “Movimento Perpétuo” e logo entrou para o grupo dos melhores poetas portugueses.
A sua poesia original – por ligar ciência com sentimentos - marcou toda uma geração reprimida por um regime ditatorial, mas que nunca deixou de sonhar e acreditar que era possível encontrar o caminho para a liberdade.
Foi bom reler estes poemas. Destaco dois, talvez os mais célebres: “Pedra filosofal” e “Lágrima de preta”, ambos musicados e cantados por Manuel Freire. O primeiro tornou-se um hino à liberdade. O segundo, uma extraordinária condenação do Racismo.
Grande António Gedeão!

PEDRA FILOSOFAL
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passa do dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
Que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como boa colorida
Entre as mãos de uma criança.

LÁGRIMA DE PRETA
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

2 comentários:

  1. Nunca li nenhum livro de poesia (assim por atacado), mas gosto muito de Gedeão. Tanto, que aprendi a "letra" da Pedra Filosofal de cor... que cantava (desafinada) conjuntamente com uma amiga! :)

    Beijocas

    ResponderEliminar
  2. Esse poeta é um espetáculo, 'adoro Pedra Filosofal', de uma beleza e candura impar, ainda mais se cantado por Manuel Freire.
    Lágrima Preta? Divino!
    beijo.

    ResponderEliminar