Quando não há solução, enfrentamos a realidade, fazemo-nos homens. Adaptamo-nos. Sobrevivemos. Vencemos, lutamos, ou pelo menos somos derrotados em grande no combate que é a vida. Com o Miguel não se passa isso, ele mantém-se no mesmo estado de espírito, à semelhança de um pássaro de asa partida que ainda salta para voar. Salta e magoa a asa.
É lindo este romance.
A história, contada em saltos entre presente e passado, prendeu-me logo no primeiro parágrafo: Isto vai passar-se no Tojal. O Tojal é perto de Arouca e longe de tudo o resto. Depois, foi ler, quase de seguida, as 365 páginas de escrita fluída e graciosa. E fiquei boquiaberta, encantada e envergonhada.
Boquiaberta com os vinte e quatro anos de idade de Afonso Reis Cabral. Vinte e quatro!
Encantada com a forma como ele aborda um tema sério e delicado, sem cair no excessivo sentimentalismo.
Envergonhada por saber tão pouco sobre a Síndrome de Down.
-Olha para mim, meu parvalhão. Como te chamas?
- Miguel.
- E eu?
- Mano.
- Eu sou teu irmão, não me chamo irmão.
- Sei.
- Sabes o quê?
E nisto a língua no discurso como faca na manteiga.
- Sei que tu és meu irmão e que não te chamas assim, estava a brincar.
Recorro à sinopse, concisa e perfeita, para fugir à vontade louca de citar, citar, citar.
“Com a morte dos pais, é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos que nasceu com síndrome de Down. É então que o irmão – um professor universitário divorciado e misantropo – surpreende (e até certo ponto alivia) a família, chamando a sai a grande responsabilidade. Tem apenas mais um ano do que o Miguel, e a recordação do afecto e da cumplicidade que ambos partilharam na infância leva-o a acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da aridez em que se transformou a sua vida e redimi-lo da culpa de tantos anos de afastamento. Porém, a chegada de Miguel traz problemas inesperados e o maior de todos chama-se Luciana.”
Mas… sem divulgar muito (para não estragar) sempre vou dizendo que:
- trata da relação complicada de dois irmãos parecidos de modos diferentes. Miguel, claro, mongolóide e o irmão mais velho (o narrador, sem nome) que nascera inteligente e perfeito;
- há, lá pelo meio, uma belíssima e triste história de amor. O amor de Miguel por Luciana, uma apanhadita do cérebro que conhece numa aula de pintura. Um amor em carne, amor em força bruta, amor à flor da pele. Um amor tão intenso que torna difícil perceber o fim de um e o começo do outro.
Um amor que o irmão mais velho não entende nem aceita e teima em contrariar. Atormentado, insiste na pergunta,
- Gostas de mim?
mesmo sabendo que a resposta é sempre a mesma,
- Da Luciana, da Luciana.
Um dia, Miguel e Luciana fogem.
E mais não digo. Leia!
Sendo irmãos, não podíamos ter nascido em lados mais diferente da vida e, no entanto, um de nós conquistara o centro da vida e o outro não.
O Miguel não pensava na vida – ele era a vida, respirava-a com naturalidade, enquanto eu ansiava por fazê-lo.
Que belo e corajoso primeiro romance. Venham mais!
O meu irmão, de Afonso Reis Cabral, Prémio Leya, 2014.
Ed. Leya, 2014
365 págs.