18 maio, 2014

"O Inverno do nosso descontentamento" - John Steinbeck

Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.
(Em “Ricardo III”, de Shakespeare)
Meu pai era um tolo por vezes brilhante, amável, bem informado e mal avisado. Sem o auxílio de ninguém, perdeu terras, dinheiro, prestígio e futuro.
Só conservou o nome, de resto a única coisa que lhe interessava.
Quem o diz é o narrador-personagem deste romance, Ethan Allen Hawley, descendente de duas das mais antigas e ricas famílias de New Baytown, uma pequena cidade portuária, outrora um burgo fundado por marinheiros, piratas e pescadores de baleias.
O pai de Ethan perdeu quase tudo o que os Allen e os Hawley acumularam ao longo de séculos. Da ruína salvaram-se várias casas e um estabelecimento comercial, que deixou ao único filho. Também este conhecerá o sabor da ruína.
Regressado da guerra, sem dinheiro e sem experiência profissional, Ethan decide vender algum património para abrir uma mercearia-frutaria na loja herdada. A falência acontece menos de dois anos depois e ele tem de vender o que lhe restava para liquidar dívidas. Consegue ficar com a velha casa de família, onde vive com a mulher Mary e os filhos adolescentes Allen e Mary Ellen.
A mercearia é vendida a Marullo, um siciliano de sessenta e oito anos, estranho e ausente. Ethan passa a caixeiro do estabelecimento. É ele é que abre e fecha o estabelecimento, contacta com os fornecedores, gere o dinheiro de caixa, faz a contabilidade.
Ao fim do dia, depois da porta fechada e da cortina corrida, na penumbra silenciosa, cansado, Ethan “desabafa"  com as latas, frascos, caixas, frutas e legumes.
Ele é um homem íntegro, simples e feliz. Não tem ressentimentos. Aceita a sua nova condição social. Já a família...
Ele convive bem com a troça, a crítica, as tentações e a pressão de todos, para que se empenhe na recuperação da fortuna perdida.
Quando aparece na loja, o patrão instiga-o a enganar os clientes: Ensinar-te-ei a fazer bons negócios. Pensa nos truques. Tens ainda muito que aprender, rapaz. Tu és esperto, rapaz, mas és honesto.
A mulher, que ele ama apaixonadamente, critica-o: Toda a gente se ri de ti. Um senhor muito distinto mas sem vintém é um falhado.
A filha pergunta-lhe: Quando te decides a tornar-te rico? Estou farta de ser pobre.
Baker, o banqueiro, propõe que ele invista o dinheiro herdado por Mary: Perca-o se for preciso, mas arrisque-o. Dê mostras de um pouco de coragem. Os homens não se deixam prostrar.
Biggers, o caixeiro-viajante propõe-lhe um esquema de luvas: Não seja idiota. Toda a gente o faz. Ele (o patrão) não perde nada e você recebe umas boas luvas.
Margie Young-Hunt, a vidente amiga da mulher, predestina: Você está destinado a um grande futuro.
(São poucas, mas "enormes" as personagens deste romance.)
À noite, quando não consegue dormir - Para mim, dormir é um esforço enorme... Quando durmo canso-me. Os meus sonhos são os problemas do dia deformados até ao absurdo. - Ethan caminha pelas ruas da cidade, sempre em direcção ao Porto Velho, o seu lugar de eleição para lembrar o passado e reflectir sobre o presente.
Na América do pós-guerra, onde a hipocrisia e o dinheiro minavam o que no homem existia de mais puro e autêntico, o íntegro Ethan começa a vacilar entre a ordem moral e a ambição.
Um homem deve viver guiado pelos seus princípios ou deixar-se arrastar?
Aposto que quer saber como reagirá o íntegro Ethan a tanta pressão. Alcançará o sucesso financeiro? A que custo?
Eu sei tudo sobre a gradual transformação de Ethan. Sobre as manobras, esquemas e golpes sujos. Sobre a amargura, a tristeza e a infelicidade que se seguiu ao sucesso financeiro e mundano. Eu sei tudo… mas não conto.
Se quiser saber - Em que patife um homem pode tornar-se! – “oiça” a história de Ethan.
É admirável!
 
O inverno do nosso descontentamento, de John Steinbeck
Tradução de João Belchior Viegas
Ed. Círculo de Leitores, 1993
325 págs.

2 comentários:

  1. Fiquei em pulgas! Imaginei-me no lugar de Ethan, tendo de tomar a mesma decisão... Tantas vezes isso nos ocorre. Acho que não ia nunca optar pelo compromisso da minha integridade MAS a vida é tão longa e cheia de espinhos... A menos que uma pessoa se mentalize que a prova à qual está sempre a ser testado é mesmo ceder à tentação de comprometer sua natureza e princípios, a escorregadela pode acontecer.

    Irei ler, um dia.

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  2. "O que faria eu no lugar de Ethan? "
    Esta e outras questões coloquei a mim própria. E penso que ninguém escapa a fazê-lo.
    A história é comovente e perturbadora. E muitissimo bem escrita pelo Prémio Nobel de 1962, ano da publicação deste clássico-actual.
    Leia!

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