23 maio, 2014

"Até onde se pode ir?" - David Lodge

- Por favor, padre, até onde se pode ir com uma rapariga?
- Não além do que não se envergonhariam de contar à vossa mãe, até onde deixariam que outro rapaz fosse com a vossa irmã.
Quem pergunta é Michael, um dos personagens deste romance surpreendente, sério, inteligente, comovente e divertido, que eu aconselho, vivamente, a adolescentes, e a mulheres e homens maduros.
Quem responde é o velho padre, que Michael arrelia com perguntas casuísticas de moral sexual.
Bem, em que ficamos, é um romance sério ou divertido?
As duas coisas, já que trata de temas sérios - o Cristianismo, a moralidade, a adolescência, a sexualidade, a invenção da pílula, o casamento, o adultério, a doença, a perda, e muito mais - de maneira inteligente, por vezes amarga, mas muitíssimo divertida. Eu soltei umas boas e sonoras gargalhadas.
A história começa no frio e escuro dia de São Valentim de 1952, com um grupo de católicos ingleses, reunidos na igreja de Nossa Senhora e São Judas, a assistir à missa do pároco Austin Brierley, o capelão não oficial da Juventude Universitária Católica.
São jovens, saudáveis, estudantes universitários, e seguiremos as suas vidas até ao final dos anos 70. Ei-los:
- Angela, a rapariga da camisola de angorá, cujo nome equivale a anjo, céu e bolo.
- Polly, sedutora e sexy, encontra consolo no indicador húmido antes de adormecer, mas não sonha mencioná-lo na confissão nem deixar que a impeça de receber o sacramento.
- Miles, figura longilínea e graciosa, um certo ar efeminado.
- Dennis, alto e amaneirado, é o robusto escravo de Angela.
- Adrian, visão limitada, sexualidade adormecida.
- Edward, rosto de boneco de borracha fechado numa expressão de exagerada devoção.
- Michael, cabeça vergada sob o peso da culpa, esconde erecções sob o casaco providencialmente largueirão, no preciso momento em que o padre Brierley eleva a hóstia na consagração.
- Ruth, a rapariga de óculos, desinteressante, atarracada, há muito que pôs de lado as questões de sexo e optou pela leitura e visitas a museus.
- Violet, minúscula, rosto pálido, unhas roídas até ao sabugo e manchadas de nicotina, uma masturbadora regular.
… talvez seja boa ideia explicar a metafísica ou a visão do mundo que estes jovens adquiriram com a educação e formação católicas. Lá em cima estava o céu e lá em baixo o inferno. O nome do jogo era Salvação e o objectivo alcançar o céu e evitar o inferno… Tudo o que faziam ou pensavam era passível de contabilidade espiritual… o caminho para o céu estava cheio de armadilhas.
Será que eles acreditam em tudo isto? O que é o pecado mortal? Será que mantêm intacta a sua virgindade espiritual e não desapontam Cristo?
Com muito humor, David Lodge dá as respostas.
Eu, que “espreitei” o destino de todos, limito-me a dizer que eles anseiam pela vida e não pela morte, e nos seus planos estão casamentos, filhos, profissões, fama, realização, trabalho – não o túmulo e a vida depois dele.
Muitos anos depois, ou melhor, muitas páginas mais à frente, quando todos eles se aproximavam dos quarenta e do cume da vida humana após o qual é sempre a descer, soube que tinham perdido o medo do inferno e nas suas vidas havia agora muito mais sexo do que antes. Mesmo se os seus corpos começavam a exibir pequenos mas inconfundíveis sinais de decadência e de desgaste: barriga dilatada, pernas com veias salientes, falta de visão, queda do cabelo, retracção das gengivas, falta de dentes.
Elas estavam no auge da capacidade do prazer sexual, conscientes de que a capacidade dos corpos para despertar desejo diminuía rapidamente e que fazer amor com a luz acesa era um risco calculado, a menos que fosse uma meia-luz bem doseada.
Eles notavam que o vigor sexual entrara em declínio, pois ao fim de muitas bebidas e noites de amor seguidas, a preocupação deixou de ser a ejaculação precoce dos primeiros anos de casados para passar a ser a simples ejaculação.
Mas soube muito, muito mais.
Saiba também. Espreite o destino deste grupo de jovens. Descubra como eles lidaram com a sexualidade, o amor, a profissão, a família, a doença e a morte. Saiba com se soltaram, fugiram, falharam, romperam, venceram.
Aprenderá e dará (tenho a certeza) sonoras gargalhadas.
Se alguém disser que temas sérios não podem /devem ser tratados de forma divertida, diga-lhe que está tremendamente errado.
Fale-lhe  da Angela, da Polly, do Miles, do Adrian, do Michael…
Divirta-se .
Não renuncie aos prazeres neste mundo para receber a recompensa no próximo.
 
(Gostei tanto deste romance de David Lodge que comprei "Autor, Autor". Será que vou voltar a rir?)
 
Até onde se pode ir?, de David Lodge
Tradução de Helena Cardoso
Ed. ASA, 2006
267 págs.

2 comentários:

  1. Tenho a sorte de ter quase todos os livros que David Lodge tem traduzidos e faltam-me ler dois, um deles é este que aqui nos traz. São todos muito divertidos e cheios de humor.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Vicente,
      Também estou decidida a comprá-los todos. Para já vou ler "Autor, Autor".
      Boas leituras.

      Eliminar