27 abril, 2014

Vasco Graça Moura (1942-2014)

PAX RUSTICA, uma ironia

atravesso o pinhal. o meu cão salta.
fulvo tigrado ele é da cor do mato.
por entre o tojo escapuliu-se o gato
e liga as copas uma nuvem alta.

evito a estrada e o seu traçado exacto
que a lentidão municipal asfalta.
antes o cimo em que o pulmão se exalta
e as pinhas vêm à ponta do sapato.

reestolho e urze, giestas, estalidos
de folhas secas, água a correr, ruídos,
vozes distantes chamam dos quintais.

já o sol vai a pino, já no ermo,
como a manhã, todo o prazer tem termo:
chegado à vila, vou comprar o jornal.

Em "Poemas Escolhidos", de Vasco Graça Moura, Bertrand Editora, 1996

Adeus,Vasco Graça Moura!

17 abril, 2014

Gabriel García Márquez (1928-2014)


Os que me conheceram aos quatro anos dizem que era pálido e ensimesmado e que só falava para contar disparates, mas os meus relatos eram em grande parte episódios simples da vida diária, que eu tornava mais atraentes com pormenores fantásticos para que os adultos me prestassem atenção. A minha melhor fonte de inspiração eram as conversas que os mais velhos mantinham diante de mim, porque pensavam que não as entendia, ou as que cifravam de propósito para que não as entendesse. E, de facto, acontecia o contrário: absorvia-as como uma esponja, desmontava-as em peças, alterava-as para escamotear a origem, e quando as contava aos mesmos que as tinham contado ficavam perplexos pelas coincidências entre o que eu dizia e o que eles pensavam.
Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra m se chamasse éme e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse émea e sim ma. Era-me impossível ler assim.
Quando o meu avô me ofereceu o dicionário, despertou em mim tal curiosidade pelas palavras que o lia como um romance, por ordem alfabética e sem entender nada. Foi assim o meu primeiro contacto com o que haveria de ser o livro fundamental no meu destino de escritor.
...
Comecei a ler como um autêntico romancista artesanal, não só por prazer como pela curiosidade insaciável de descobrir como estavam escritos os livros dos sábios. Lia-os pelo direito, depois pelo avesso, e submetia-os a uma espécie de estripamento cirúrgico até desentranhar os mistérios mais recônditos da sua estrutura.
A minha vida esteve sempre perturbada por um emaranhado de rasteiras, fintas e ilusões para ludibriar os incontáveis engodos que tentavam transformar-me em qualquer coisa que não fosse escritor."

Em "Viver para contá-la", de Gabriel García Márquez, ed. Dom Quixote, 2003
 
Adeus, Gabo!

16 abril, 2014

Poema de... Miguel Torga

ALELUIA
Com flores de rododendro cor de fogo
Anuncio aos sentidos
O milagre
Da ressurreição.
E o Cristo vivo, em que se transfigura
A mais vil criatura
Que atravessa a praça,
É como que uma graça
A mais da primavera.
Ah, quem pudera
Todos os dias
Olhar o mundo assim, repovoado
De fraternidade,
Quente dum sol desabrochado
Em cada pétala de realidade!

(Foto tirada da net)

11 abril, 2014

"Levantado do chão" - José Saramago

Às vezes, uma pessoa põe-se a ler a história desta terra portuguesa e há desproporções que nos dão vontade de sorrir, é o menos que se pode dizer, muito mais cabimento teria aqui o riso declarado…
 
Acho que do chão se levanta tudo, até nós nos levantamos. Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças.
Isto é um livro sobre o Alentejo.
 
Um livro sobre a luta de um povo face às forças opressoras, sobre exploração, sofrimento, coragem, revolta, ignorância, miséria.
Quando um homem se queixa, alguma coisa lhe dói.
Um livro que entrelaça romance - a saga de três gerações duma família de camponeses pobres, os Mau-Tempo: Domingos Mau-Tempo (pai), João Mau-Tempo (filho), Gracinda Mau-Tempo (neta), com história - as transformações políticas e sociais ocorridas em Portugal, entre 1900 e 1975, numa sequência cronológica perfeita.
Um livro com personagens bem caracterizadas e diálogos estonteantes, em muitas histórias sabiamente doseadas de amor, alegrias, derrotas, vitórias, morte, dor.
Publicado em 1980, este romance de Saramago é o primeiro a revelar o estilo próprio da sua escrita. Os críticos consideram-no um dos romances fundamentais da sua obra.
Pudéssemos nós atar os fios soltos, e o mundo seria a mais forte e justificada de todas as coisas.
Para mim, não foi tarefa fácil ler este romance. O enredo é demasiado denso e complexo. O rol de personagens é infindo. O retrato social é dramático. O registo político é extremado.
Talvez eu não tenha sensibilidade política suficiente para entender a mensagem do autor. É isso!
Bem, ler Saramago nunca é fácil, mas... aprende-se sempre.
A guarda não sai do posto, os anjos varrem o céu, é dia de revolução, quantos são.
Vai o milhano passando e contando, um milheiro, sem falar nos invisíveis, que é sina a cegueira dos homens vivos não darem conta certa de quantos fizeram o feito, mil vivos e cem mil mortos, os dois milhões de suspiros que se ergueram do chão…
E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.
O cão Constante? Hum! Onde é que eu já vi isto?
 E mais não digo... porque não quero.
 
Levantado do chão, de José Saramago
Ed. Caminho, 1998
366 págs

"Fugas" - Alice Munro

Vê um pouco da vida real. Sai para o mundo.
Este é o meu primeiro livro da contista canadiana Alice Munro.
Comprei-o por mera curiosidade, quando soube que lhe fora atribuído o Nobel da Literatura 2013. Queria “encontrar-me” rapidamente com a velhinha linda, de cabelos prateados, de que nunca ouvira falar.
Falha minha! Descobri nas livrarias, e em português, vários livros de Alice Munro. Afinal, eu, que sou louquinha por contos, olhava, olhava e não via nada. Acontece!
Escolhi “Fugas”, porque algum teria de ser o primeiro e porque também a mim me apetece, isso mesmo, fugir. Acho que apetece a todos, não é verdade?
Bem, bem, convém dizer que por cá continuo e foi sentada no mesmíssimo sofá, que li as oito histórias que falam de mulheres - de todas as idades e de origens diferentes - em fuga, dos outros e de si próprias.
São histórias emocionantes sobre vidas reais, escritas por quem conhece bem a alma feminina, e tão convincentes que dei por mim a pensar se não seriam verdadeiras. Estranho!
Gostei de todas?
Senti alguma dificuldade em entender a fuga de Carla, em "Fugida", a primeira história, e desanimei.
Avancei para a segunda “Acaso”, depois para a terceira “Em breve”, depois para a quarta “Silêncio” e… só parei no finzinho da oitava, rendida à narrativa e clareza da escrita
Em “Acaso” conheci uma mulher admirável e foi com espanto, satisfação e prazer, que a reencontrei nas duas histórias seguintes.
As três histórias narram vinte anos de vida de Julliet:
- na primeira, ela tem o cabelo castanho claro e aspecto de uma colegial atenta. Vive numa pequena vila, e todos lhe dizem – Sai para o mundo.
- na segunda, ela volta à casa da sua infância, para os pais conhecerem Penelope, a neta de treze meses.
- na terceira, ela perdeu o vigor do seu castanho natural por causa dos anos em que o pintara de ruivo- era agora de um castanho prateado, fino e ondulado. Está sozinha. Vive entre livros e passa grande parte do tempo a ler e a esperar pela filha, que se foi embora sem dizer adeus.
Mais não conto, sobre este conto. Nem sobre os outros sete.
Leiam! Leiam!
Eu, podem crer, vou ler todos, mas mesmo todos, os contos desta extraordinária senhora.
Estranhei a atribuição do Nobel a uma contista, mas bastou o arrepio que senti ao ler “Silêncio” – uma história emocionante, triste e bela - para não calar a minha admiração e gritar:
Viva Munro!

Fugas, de Alice Munro – Prémio Nobel de Literatura, 2013
Tradução de Margarida Vale de Gato
Ed. Relógio d’Água, 2007
263 págs.

04 abril, 2014

8º - Você sabe em que livro se esconde este “primeiro parágrafo"?

“MODO DE FAZER:
A cebola tem de ser picada miudinha. Sugiro-lhes que ponham um bocadinho de cebola na moleirinha a fim de evitar o incómodo lacrimejar que acontece quando a cortamos. O aborrecido de chorar quando picamos cebola não é o simples facto de chorar, mas sim às vezes começarmos, ou melhor, ficarmos picados, e já não conseguirmos parar. Não sei se já vos aconteceu, mas a mim, para dizer a verdade, já. Vezes sem conta.”
 
 
Resposta do 7º “Primeiro Parágrafo”:
Em “Quando a neve começa a derreter”, de A.D. Miller, ed. Civilização, 2011

01 abril, 2014

Dieta 100% eficaz - verdade, ou mentira de 1 de Abril?

Um minimercado. Fila para a caixa. Diálogo entre o jovem que segura uma grande embalagem de comida para cão, e a mulher à sua frente na fila.
 
MULHER:       Tem um cão, é?
JOVEM:          Se eu tenho um cão.
MULHER:       (Sorri) Sim.
JOVEM:          Não, minha senhora.
MULHER:       Ligeiramente desconcertada) Ah.
JOVEM:          Não tenho nenhum cão.
MULHER:       Certo.
JOVEM:          Estes biscoitos são para mim.
MULHER:       Para si.
JOVEM:          Sim, minha senhora. É uma dieta.
MULHER:       Uma dieta?
JOVEM:         Sim, minha senhora. Bom. Provavelmente, eu nem sequer lhe devia contar isto. Já experimentei algumas vezes, e deixe-me dizer-lhe que resulta bastante bem. Uma pessoa não chega propriamente a comer. Dá-me a fome? Meto uns quantos biscoitos pela goela abaixo. Levo um saco deles para toda a parte. Acordo de noite? Não desço à cozinha para esvaziar o frigorífico. Tenho um pratinho destes biscoitos na mesa de cabeceira, e é só estender o braço e engolir uns poucos. É questão de ter sempre um copo cheio de água ali à mão. Da última vez, perdi doze quilos num mês. Recomendo este método a qualquer pessoa. Essas dietas que a gente lê por aí… Eu sei que isto funciona. É claro que, assim como outra coisa qualquer, é preciso saber usar a cabeça. Uma vez, acordei no hospital. Não nos podemos deixar dispersar, mais nada. É como tudo. Mas se uma pessoa quer mesmo perder peso, isto não falha. Estes biscoitos têm tudo o que é necessário. As vitaminas e os minerais todos. Uma coisa lhe digo. Ao fim de alguns dias uma pessoa já nem quer outra coisa. Recomendo este método a toda a gente, sem dúvida.
MULHER:      Mas você disse que acordou no hospital. O que é que lhe aconteceu? Teve uma reação alérgica ou quê?
JOVEM:         Ah, não, minha senhora. Não foi nada desse género. Estava agachado no meio da rua, a lamber os tomates, e veio um carro e atropelou-me. Tenha cuidado consigo. Ouviu?

Em "O Conselheiro" de Cormac McCarthy.

(Foto tirada da net)