29 novembro, 2013

Poema de... David Mourão-Ferreira

DESPOJO
Já depois de colhido
pela mão do segredo,
o amor foi cortado
com a faca do medo.

Das metades mordidas
na vertente das fugas,
tão-somente ficaram:
remorsos, raivas, rugas.

26 novembro, 2013

Frases soltas... "Vermelho e Negro" de Stendhal

“O romance é um espelho que se passeia por uma longa estrada além. Ora reflecte aos olhos do leitor o azul dos céus, ora o lodo dos lamaçais da estrada. O homem que leva o espelho será indubitavelmente acusado de imoral! O espelho mostra a lama, e acusais o espelho! Acusai antes a estrada onde fica o lamaçal, e ainda mais o inspector das estradas que deixa acumular-se a água e formar-se o lamaçal.”

22 novembro, 2013

"Em parte incerta" - Gillian Flynn

Era uma vez uma rapariga de Manhattan
Que só dormia sobre lençóis de cetim
O marido escorregava e deslizava
E os seus corpos colidiam
Por isso faziam algo obsceno em latim.

Amy Elliot, a rapariga de Manhattan, desapareceu. Será Nick Dunne, o marido, um assassino?
… não contes, mostra…
Está bem, eu não conto. Mostro a capa do livro e desvendo apenas umas coisitas, que não beliscarão o mistério deste “triller psicológico”. Viciante, dizem os entendidos. Será mesmo? Respondo no fim.
A história relata o misterioso desaparecimento de Amy - jovem, linda, inteligente, filha única de dois escritores, jornalista, mulher de Nick, escritor de revistas - precisamente no dia em que celebravam o 5º aniversário de casamento, na casinha junto ao rio Mississípi, e pode dividir-se em duas partes.
Na primeira parte os capítulos alternam entradas do diário de Amy (com revelações inesperadas), com o dia-a-dia de Nick após o desaparecimento da mulher (a pressão da polícia e dos media).
Depois de muitas voltas e reviravoltas, chega-se à segunda parte. Bem, a segunda parte começa assim: Sou mais feliz agora que estou morta. E mais não digo.
Amy e Nick estavam desempregados e quase falidos, quando deixaram a casa oferecida pelos pais de Amy em Manhattan, a frenética e excitante terra do futuro, e se mudaram para Cartago do Norte, a cidadezinha de perdedores conformados, onde Nick nasceu.
“Abatidos” pela Internet, pela recessão, pelo público americano que preferia ver televisão, ou jogar videojogos, precisavam rapidamente de novas carreiras, de novos desafios.
Nick dá umas aulas e, como o mundo vai querer sempre uma bebida, investe as últimas poupanças de Amy na concretização de um sonho antigo: abre um bar. Um bar que gere com Margo, a sua irmã gémea, também desempregada. Um bar que o afasta de casa e da mulher. Um bar que encobre um namoro secreto.
Sozinha, Amy, a escritora de questionários de personalidades, que adora charadas e jogos, sobretudo jogos psicológicos, desespera, sem estratégia de vida viável.
Vai vingar-se. Como?
Deixa de falar e passa a jogar… um jogo perverso.
Amy! Amy! Amy!
 
Bem, a publicação deste triller foi um sucesso – chegou a nº 1 no New York Times - com os críticos a apelidá-lo de engenhoso, viperino, irresistível, pungente, brilhante, etc. etc. etc..
Eu... bem, eu ... desfolhei todas as 515 páginas, não deixei para trás um só parágrafo deste casamento surpreendente, numa América decadente, mas não me entusiasmei.
Pelo contrário, desesperei com a “xaropada” da segunda parte.
Casamento é compromisso e trabalho duro, e depois mais trabalho duro, comunicação e compromisso. E depois trabalho.
Verdade!
 
Em parte incerta, de Gillian Flynn
Bertrand Editora, 2013
Tradução de Fernanda Oliveira
515 págs.

19 novembro, 2013

"O Principezinho" - Antoine de Saint-Exupéry e "Encontrei o Principezinho" - Jorge Cabral dos Santos

 
"Era uma vez um principezinho que habitava num planeta pouco maior que ele e precisava de um amigo…"

Carta a Saint-Exupéry:
"... andava eu na serra da Arrábida à procura do meu amigo Tiago que por lá se perdeu, quando encontrei o principezinho. Suponho que foi esta cumplicidade que nos aproximou um do outro: ambos procurávamos um amigo! Só que nele era mais forte a certeza de te encontrar, ao contrário da minha em achar o Tiago, que começava a morrer como morre o pôr do Sol na paisagem de uma tarde que nós queremos conservar para sempre."

… só na solidão podemos reconhecer um amigo e só no silêncio o podemos compreender.
 
Não encontrei um amigo para partilhar o que senti, ao ler este testemunho de amizade, amizade verdadeira.
Partilho, então, com todos os que passarem por aqui.
Doeu, doeu muito, mesmo muito, muito.
 
(O Tiago, vinte anos, escuteiro, desapareceu em Julho de 1988 na serra da Arrábida. Conhecia bem a serra. Nunca foi encontrado.)

15 novembro, 2013

"Desgraça" - J.M. Coetzee

Talvez seja bom sofrer uma queda de vez em quando. Desde que não nos quebremos.
Quem o diz é David Lurie, 52 anos, divorciado, professor adjunto de comunicação na Universidade Técnica de Cape, na Cidade do Cabo.
Lurie não gosta de ensinar dá aulas apenas para ganhar a vida, mas gosta de poesia e de escrever sobre pessoas mortas.
Do que ele gosta mesmo, mesmo é de mulheres. Muito!
Cresceu rodeado delas e cedo aprendeu a seduzi-las, amá-las e... abandoná-las. Transformou-se num amante das mulheres, num mulherengo.
… durante anos, décadas, foi essa a espinha dorsal da sua vida.
Os anos passam e um dia, sem aviso prévio, Lurie perde os seus poderes de sedução. As mulheres passam a ignorá-lo e ele entra numa fase de nervosismo e promiscuidade: tem casos com as mulheres dos colegas, engata turistas nos bares, paga a prostitutas, persegue alunas. É raro passar um período sem se apaixonar por alguma das suas alunas.
Ora, numa tarde, ao regressar a casa, avista uma delas, Melanie Isaacs, trinta anos mais nova do que ele, aluna do curso de teatro. Sedutor, aproxima-se dela, sorri, ela... devolve-lhe o sorriso.
- Eu vivo aqui perto. Posso convidá-la para um copo?
Melanie diz que sim e o professor Lurie, um homem solitário, com dois casamentos falhados e uma filha ausente, vai cometer um erro, um enorme erro.
“Professor acusado de assédio sexual”…
Lurie admite publicamente a culpa, demite-se da universidade, fecha a casa, abandona a cidade e parte para junto da filha, Lucy.
- Ficas cá algum tempo? – pergunta ela.
- Uma semana? Podemos pensar numa semana? Só receio que te aborreças.
- Não me aborreço.
- Bom, sabes que és bem-vindo se quiseres ficar.
- É muito simpático da tua parte, querida, mas eu gostava que continuássemos amigos. Longas visitas não são boas para as amizades.
- E se não lhe chamarmos visita? Se lhe chamarmos refúgio? Aceitarias um refúgio sem termo certo?
Aceitou.
Lucy, filha de mãe holandesa, vive sózinha numa pequena quinta, isolada, que comprou com a ajuda do pai, desde que Helen, a companheira, partiu para Johannesburg.
Na quinta, Lucy cultiva hortaliças, frutas e flores. Cria gado. Tem um canil.
Tem o apoio de Petrus, antigo colaborador, agora co-proprietário, que vive na quinta com a família. Amigos, amigos, apenas os vizinhos Bev e Bill Shaw, dois acérrimos defensores dos direitos dos animais.
Lurie aprende a relacionar-se com a filha, a interessar-se pelos animais, a defender o vegetarianismo, a viver numa nova sociedade e a aceitar as complexidades raciais.
Tudo corre bem, até uma tarde de pesadelo, de violência extrema, que os vai modificar, a ambos, de forma profunda e imprevisível.
A história de um país em mudança, falou através da brutalidade de três homens… uma história de maldade.
Segue-se o choque, o medo, a dor, o silêncio, a descoberta, a vergonha.
Lurie sugere que Lucy deixe a quinta, até que as coisas melhorem no país.
- Se eu partir agora… nunca mais volto.
Ele volta para a cidade, experimenta o arrependimento, pede perdão e volta. Volta para dar e receber amor.
O que acarretará ser avô?
Tem de ler novamente Victor Hugo, o poeta dos avós. Poderá aprender alguma coisa.
Aconselho a todos a leitura desta história dura, carinhosa, comovente, grandiosa.
Não se esquece.
 
Desgraça, de J.M. Coetzee (Prémio Nobel de Literatura 2003)
Ed. Dom Quixote, 2000
229 págs.

12 novembro, 2013

"Encalhei" na pág. 51 do último romance de Valter Hugo Mãe

Escreve Valter Hugo Mãe, na página 37 do seu romance:
Descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém.
Eu sei isso... e não peço tanto... peço apenas a ajuda de quem já leu o romance, para :
 
- compreender o significado de tudo o que li / vi (já nem sei) até à página 50;
 
- avançar para além do assustador primeiro parágrafo da página 51, onde encalhei: Por vezes, a minha mãe sangrava nos pratos.
 
- não me desapontar com parágrafos que já espreitei mais à frente, como este, por exemplo: Tu podes chegar à morte com tanta facilidade. Cada passo é um perigo na nossa vida. Se não te acautelares, morres de distraída.
 
- ler tudo, mesmo tudo,  para poder entender o último parágrafo: Quem não sabe perdoar , só sabe coisas pequenas.
 
Vai ser difícil perdoar-te, Valter Hugo Mãe.
Só com muitas ajudas...

08 novembro, 2013

"O amor é para os parvos" - Manuel Jorge Marmelo

- O amor é para os parvos.
- O amor é para os parvos.
Repetiste, antes de te voltares para trás e deixares que as lágrimas rolassem como gotas de chuva lavando a poeira das paredes. Chorámos ambos, abraçados, para que não pudesses ver o meu rosto, nem eu o teu. O Verão extinguia-se lá fora e nós soubemos, em algum momento daquele nosso abraço, que não era só a estação que chegava ao fim. Talvez tu o soubesses já, mesmo antes de me dizeres que
- O amor é para os parvos.
 
Hoje saí de casa e é já outra vez Outono como no dia em que partiste. Disseste que
- O amor é para os parvos
E foste embora sem olhar para trás, deixando sobre a fronha um resto de ti, uma imagem desfocada, e um recado em que dizias que eu era o teu
- Maior amor
Que partias para me deixar com a vida que é minha e à qual tu não pertencerias nunca. É já tarde, eu sei, mas agora que penso nisso vejo que havia tanto para te dizer. Devia ter-te dito que o meu amor por ti é independente do resto da minha vida; que é como um pássaro enjaulado que quer voar mas tem medo do mundo lá fora porque sente as asas frouxas. Tenho pensado tanto nisso; tenho pensado tanto em ti.
 
Eu amo-te, tu amas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E se calhar tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.
 
Voltei à estante da minha filhota e abasteci-me de uma dulcíssima dose de amor.
Encontrei este monólogo sobre os laços do amor, escrito em prosa poética, escorreita, imaginativa e sensível. E, por vezes, perturbadora.
Quando o tema é o amor… tudo pode acontecer… até “virarmos” parvos.
Paciência!
 
O amor é para os parvos, de Manuel Jorge Marmelo
Ed. Campo das Letras, 2000
117 págs.

05 novembro, 2013

3º - Você sabe em que livro se esconde este "primeiro parágrafo"?

Na primavera dos seus vinte e dois anos, Sumire apaixonou-se pela primeira vez na vida. Foi um amor intenso como um tornado, abatendo-se sobre uma vasta planície -, capaz de tudo arrasar à sua passagem, atirando com todas as coisas ao ar no seu turbilhão, fazendo-as em pequenos pedaços, esmagando-as por completo.”
Resposta do 2º “primeiro parágrafo”:
Em “A sombra do vento”, de Carlos Ruiz Zafón, ed. Dom Quixote, 2004

01 novembro, 2013

"Este dia em que nos encontramos é sexta-feira…

… donde se tirará facilmente por conclusão que o dia de ontem foi quinta-feira e o de anteontem quarta. A muitos irão parecer provavelmente escusas, óbvias, inúteis, absurdas, e até estúpidas, as informações complementares com que resolvemos beneficiar os dias de ontem e de anteontem, mas desde já nos adiantamos a contrapor que qualquer crítica que viesse a expressar-se nesses termos só por má-fé ou ignorância o faria, uma vez que, como é geralmente conhecido, línguas há no mundo que chamam a quarta-feira, por exemplo, mercredi, miercoles, mercoledi ou wednesday, à quinta-feira jeudi, jueves, giovedi ou thursday, e à própria sexta-feira, se não tivéssemos o cuidado de lhe proteger frontalmente o nome, não faltaria por aí quem começasse já a chamar-lhe freitag. Não é que não o possa vir a ser no futuro, mas tudo tem o seu tempo."

In "O homem duplicado", de José Saramago, ed. Caminho, 2002

(Foto tirada da net)