22 fevereiro, 2013

"A neta do Senhor Linh" - Philippe Claudel

É um velho de pé na ré de um barco. Aperta nos braços uma mala leve e um recém-nascido, ainda mais leve do que a mala. O velho chama-se Senhor Linh. É o único a saber que se chama assim pois todos os que o sabiam morreram à sua volta.
Começa assim este sublime, delicado e pequenino/ENORME romance-conto-fábula sobre a perda, o exílio, a solidão, a amizade, a fragilidade do ser humano.
Lê-se de um fôlego, mas dificilmente se esquece.
Para fugir a uma guerra que tudo lhe tirou, excepto a neta de seis semanas, o Senhor Linh embarca rumo a um centro de acolhimento para refugiados, numa cidade desconhecida, num país distante frio e “sem cheiro”.
O velho senhor sobrevive em função da criança. Obsessivo, ocupa o tempo a cuidar dela, a cantar-lhe a canção que aprendera com a sua própria avó, a olhá-la dia e noite até adormecer exausto e sonhar com os perfumes da terra natal.
O velho senhor, recusa sair do conforto do centro, fecha-se sobre si mesmo, até um dia...
... um dia em que aperta a neta contra o peito, sai para o exterior, dá um pequeno passeio pela cidade e se senta num banco de madeira em frente a um parque, a pensar na sua aldeia.
Nada se assemelha ao que ele conhece. É como vir ao mundo uma segunda vez.
No mesmo banco irá sentar-se o Senhor Bark, um antigo combatente de outra guerra no país do Senhor Linh, um homem gordo e afável que perdeu recentemente a mulher. Une-os a dor da solidão.
O Senhor Bark fuma, fuma, fuma…fala, fala, fala…
O Senhor Linh não entende uma só palavra do que ele diz, mas deixa-se embalar pela voz daquele desconhecido.
Vão encontrar-se todos os dias, numa estranha amizade feita de gestos, silêncios e descobertas. Aprenderão a dizer apenas «Bom dia!» na língua um do outro. E basta!
Tudo corre bem na vida do Senhor Linh, até um dia…
… um dia em que, inesperadamente, o transferem para outro centro de acolhimento e não lhe dão tempo para se despedir do amigo.
… o tempo passa, fere-lhe a alma, mói-lhe o coração e encurta-lhe o fôlego.
Então, uma noite, foge com a neta e vai procurar na cidade desconhecida o seu amigo. Grita a única palavra que conhece na língua daquele país «Bom dia!» e berra como se a sua própria vida dependesse daquela simples palavra.
Encontrará o amigo?
O desfecho é comovente.
O que é a vida humana senão um cordão de sofrimento que penduramos ao pescoço?
Com a alma despedaçada, só me resta gritar bem alto «Bom dia para todos!».
 
A neta do Senhor Linh, de Philippe Claudel
Ed. ASA, 2006
Tradução de Isabel St. Aubyn
91 págs.

19 fevereiro, 2013

Viva! Ganhei mais um selinho

Viva! Ganhei mais um selinho.
Este foi oferecido pela Teresa, do excelente blogue  romances de mesinha-de-cabeceira. Obrigada!
Como não quero tudo só para mim... vou partilhá-lo com onze blogues que visito com regularidade. Por exigência do prémio, todos têm menos de 200 seguidores:
- Ler um prazer adquirido - http://lerprazeradquirido.blogspot.pt/
- Pensar nos livros - http://libriscogitare.blogspot.pt/
- Sugestão de leitura - http://sugestaodeleitura.blogspot.pt/
- Poedia... é música - http://poesiamariajb.blogspot.pt/

Decidi, há já algum tempo, não responder a questionários. Acho que já todos sabem tudo sobre mim.
Também não os elaboro. Contudo, quem quiser responder a algumas perguntitas, deixo abaixo o questionário da Teresa (romances de mesinha-de-cabeceira). Ela não se irá zangar :
1. Que género de livros mais gostas de ler?
2. Qual o teu livro favorito?
3. Qual a tua personagem favorita?
4. Quantos livros tens?
5. Qual o teu escritor(a) favorito?
6. Porque decidiste criar um blog?
7. Qual o teu maior sonho?
8. Qual a tua viagem de sonho? 9. Qual a tua primeira leitura do ano 2013?
10. Qual o livro que menos gostaste?
11. Qual a editora que mais livros lês?

Bjs e boas leituras para todos.

15 fevereiro, 2013

"Engano" - Philip Roth

… em imaginação sou infiel a toda a gente…
Que capa fantástica! Que imaginação incrível! Que “tratado” sobre a paixão humana.
- Vieste para a lição?
- Não.
- Fizeste o trabalho de casa?
- Não tenho a certeza.
- Está bem. Antes de mais vamos fechar a porta à chave.
É assim este romance. Feito de diálogos espantosamente inteligentes, cristalinos, impiedosos, estonteantes.
- É muito estranho ver-te.
- Mais estranho é não me veres, ou não será?
- Não. O normal é não te ver.
São diálogos de dois adúlteros apaixonados, num estúdio/esconderijo em Notting Hill. Ela é uma jovem inglesa de 34 anos, linda, culta e neurótica. Ele é Philip (coincidência?!), um escritor judeu americano (coincidência?!) nascido em 1933 (coincidência?!), desempregado.
- Estás a tremer. Estás doente?
- Estou excitada.
Antes e depois de fazerem amor, os amantes falam sobre os seus casamentos, o amor, a paixão, a felicidade, a solidão, a doença, o envelhecimento, a morte. Mas também falam sobre a América e Israel, o judaísmo, a política inglesa.
- Quando ando pela cidade nunca oiço falar da Irlanda do Norte. Só ouço falar de Israel nazi e da América fascista.
Este romance é sobre enganos e enganados. O marido enganado, a mulher enganada, os amantes enganados, os leitores enganados.
Neste romance a linguagem é despojada, crua e genuína. Choca? Por vezes… mas pouco…
- Tu não vais para o estúdio trabalhar… vais para o estúdio foder! Tens um caso com alguém no teu estúdio.
- Ai vou? Ai tenho?
- A única mulher que entra no meu estúdio é a mulher do meu romance, infelizmente. Com companhia era mais agradável, mas não funciona.
Este romance, confunde, perturba, estilhaça, fascina. Eu só posso imaginar a estupefacção dos críticos e leitores, aquando da sua publicação em 1990, com o título "Deception".
Que escritor corajoso! Que escritor espantoso!
- … a discrição não é para os romancistas. Nem a vergonha.
Ainda bem!
 
Engano, de Philip Roth
Ed. D. Quixote, 2013-02-14
Tradução de Francisco Agarez
200 págs.

14 fevereiro, 2013

Festejar o AMOR com Pedro e Inês


No Dia dos Namorados deliciem-se com a história mágica de Pedro e Inês.
Esqueçam a tragédia e festejem o amor.

"- Amo-vos desde o dia em que vos vi, sombra fugaz no caminho que vos conduzia até mim. Meu Deus! Que pressa tive então de ir ao vosso encontro e quando soube que éreis Inês… pensei que morria. Porém, nesse mesmo instante, disse para mim, «Inês, esse é o nome da minha alma. Inês. A minha Inês» e desde então sou apenas vosso e sei-o agora, sois apenas minha.
- Pedro!
Foi um abraço que confundiu corpos e almas. E, ali mesmo, sobre a erva que atapetava o jardim, com o rumor longínquo do mar como fundo e à luz escassa das estrelas, Inês foi de Pedro e Pedro foi de Inês, e jamais haveria de romper-se o laço que os uniu."

08 fevereiro, 2013

"O fio das missangas" - Mia Couto

A vida é um colar.
Regressei aos contos e descobri este colar mágico, composto por vinte e nove missangas redondinhas, coloridas e brilhantes, alinhadas em fio de pura poesia. São um deslumbramento!
Neste colar, as missangas são histórias pequeninas, mas nelas, cabem vidas inteiras. E que vidas...
Eis algumas das missangas:
O MENDIGO SEXTA-FEIRA JOGANDO NO MUNDIAL
Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes… os doentes são a minha família, o hospital é o meu tecto…
OS OLHOS DOS MORTOS
… a Vida é tão cheia de luz que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos.
OS MACHOS LACRIMOSOS
Eles se encontravam por causa da alegria. No bar de Matakuane, os homens anedotavam, fabricando risadas. Um único móbil: festejavam a vida. As suas esposas não suportavam aquele disparatar. Afinal elas, as mulheres, não precisavam de ritual para festejar a vida. Elas são a festa da vida.
A SAIA ALMARROTADA
Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram uma saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.
Lindo, lindo, lindo!
A escrita de Mia Couto enfeitiça-nos e, como por magia, lemos as histórias e relemos, e relemos… e descobrimos novos encantos.
…os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os encantos.
Nem todos!
O fio das missangas, de Mia Couto
Ed. Caminho, 2004
149 págs.

05 fevereiro, 2013

Desafio nº 14 - Alvoroço no reino, intrigas na corte. É pitoresco este romance. Quem o escreveu?

- Há que levantar o silêncio como se levanta um cobertor. Então chegará até nós um bulício distante feito de mil ruídos diferentes, desde o grito daquele que assassina na escuridão uns rufiões a soldo, até ao gemido de prazer de uma rapariga que acaba de descobrir o amor, porque o seu marido foi de viagem e ela decidiu, por fim, receber como amante o homem que a cortejava. Sabe Vossa Majestade que esse homem lhe pedirá que se dispa? Mas também há maridos que expulsam as suas mulheres da cama por pretenderem despir-se. Os homens e as mulheres desta corte não pensam hoje noutra coisa, porque se disse que o Rei, Nosso Senhor, queria ver...
Disse-se em todos os círculos, em todas as esquinas, em todos os locutórios. Não se disse, mas aludiu-se, nos púlpitos, e andam pela cidade procissões de penitentes a pedir que não os atinja a vingança do Senhor pelos pecados do Rei.
 
Ajuda se eu disser que este rei "pecador" queria apenas ver a Rainha nua?
Ajuda se eu disser que "pasmamos" com a crítica mordaz à pretensa moral e bons costumes da corte espanhola, na época da Inquisição?
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Resposta do Desafio nº 13:
Trata-se de “Gente feliz com lágrimas", de João de Melo, publicado pela Dom Quixote, em 1988.
Acreditem que é um romance genial. Não deixem de ler.
Parabéns para quem acertou.

03 fevereiro, 2013

Falando de poesia...

... vale a pena ler esta excelente crónica de José Tolentino Mendonça, publicada na Revista, do jornal Expresso, de 2 Fevereiro 2013.
 

01 fevereiro, 2013

"Relato de um náufrago" - Gabriel García Márquez

O mar é igual por todos os lados.
É mesmo verdade que este naufrágio aconteceu? Sim, como esclarece o autor no início do livro, ao contar “a história desta história”.
Mas, há livros que não são de quem os escreve, mas de quem os sofre, e GGM dá a palavra a Luis Alejandro Velasco, vinte anos, único sobrevivente do naufrágio, para que relate minuciosamente como tudo se passou.
Perguntam-me como é que se sente um herói. Nunca sei o que responder. Pela minha parte, eu sinto-me o mesmo que antes. Não mudei nem por dentro nem por fora.… estive dez dias sem comer nem beber numa balsa.
Tudo aconteceu em Fevereiro de 1955. O contratorpedeiro “Caldas”, da Marinha de Guerra da Colômbia, regressava ao porto colombiano de Cartagena, depois de oito meses em reparações no porto de Mobile - Alabama, Estados Unidos.
Regressava com a tripulação e carregado de contrabando, como fogões, frigoríficos, máquinas de lavar
A duas horas da chegada a Cartagena, uma tempestade no mar das Caraíbas, provoca o desastre: ondas altas e fortes fazem adornar o navio para estibordo e varrem o convés, atirando para o mar oito marinheiros e grande parte da carga amontoada na proa.
O navio, ainda com excesso de peso,  não pôde manobrar para resgatar os marinheiros do mar e seguiu viagem para Cartagena.
Iniciaram-se as buscas. Quatro dias depois, os marinheiros foram declarados oficialmente mortos, numa tempestade - que nunca existiu.
Mas...  numa balsa à deriva no mar, Luis Alejandro Velasco sobrevive.
Sobrevive a dez dias de solidão, desespero, fome, sede, “encontros” diários com tubarões, muito mar e muito céu.
… cada vez que o ânimo esmorecia, acontecia qualquer coisa que fazia renascer a minha esperança. Nessa noite foi o reflexo da Lua nas ondas.
Finalmente, um dia o náufrago solitário vê terra, e não é uma ilusão. É uma praia deserta no norte da Colômbia.
Desesperado, nada para terra. Esgotado, procura socorro. Torna-se num herói nacional e é condecorado.
Mas a sua versão da história não agrada ao governo (uma ditadura militar)  e é em terra que Velasco irá viver a maior das tormentas.
Algumas pessoas dizem-me que esta história é uma invenção fantástica. Eu pergunto-lhes: então, o que é que eu fiz durante dez dias no mar?
O relato dos factos foi recolhido por GGM, no jornal onde trabalhava, e publicado em fascículos assinados pelo náufrago. Rapidamente se transformou em denúncia política. Custou a glória ao náufrago, o encerramento do jornal e o exílio ao repórter.
Quinze anos depois, GGM narra, como só ele sabe, esta aventura com sabor a sal.
Saboreei!
 
Relato de um náufrago, de Gabriel García Márquez
Edições Asa, 1995
Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra
124 págs.