28 setembro, 2012

"Ensaio sobre a lucidez" - José Saramago

Assim disse Saramago:
Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.
Ora bem, eu não sofri tanto assim. Até sorri por diversas vezes, com a crítica mordaz que ele faz ao poder político. Uma crítica cáustica, como só ele sabe fazer. A primeira parte do livro é, verdadeiramente risível. A segunda parte, bem, é muito mais séria.
A trama é interessante:
Num país qualquer é dia de eleições municipais. Na capital chove torrencialmente e durante a manhã poucos eleitores comparecem para votar. Numa determinada mesa eleitoral o presidente e os delegados dos partidos representados temem uma alta abstenção.
No período da tarde os eleitores começam a aparecer, se bem que a conta-gotas, sem entusiasmo, como folhas outonais desprendendo-se lentamente dos ramos e foi só próximo do encerramento das urnas que compareceram em força para exercer o seu direito de voto, obrigando a prolongar o horário da votação. Tudo parecia normal até ao momento da contagem dos votos, quando se deu a catástrofe: Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco.
A estupefacção varre o país de lés a lés. O Governo decide repetir as eleições e uma vez mais a contagem dos votos confirma e agrava a tendência das eleições anteriores: oitenta e três por cento de votos em branco.
O primeiro-ministro reconheceu que a gravidade da situação era extrema, que a pátria havia sido vítima de um infame atentado contra os fundamentos básicos da democracia representativa… se a maior parte dos habitantes da capital… tinham querido limpeza, iriam tê-la.
Segue-se uma onda de perseguições, inquirições, prisões e a declaração do estado de sítio. De nada serviu. Não encontraram os culpados do boicote eleitoral.
Desnorteados, os governantes decidem-se pela retirada sigilosa do governo para outra cidade, levando consigo o exército e as forças policiais.
Fogem, na calada da noite, isolando a capital e abandonando os habitantes à sua sorte. Os habitantes/eleitores que simplesmente manifestaram a sua indignação e revolta pela prática política de todos os partidos – direita, esquerda e meio - votando em branco e provando que a cegueira branca não os fez perder a lucidez.
Na segunda parte do livro, aparecem algumas personagens d’“O ensaio sobre a cegueira” - o médico, a mulher do médico, o cão das lágrimas – que mais uma vez vivem o terror da cegueira branca.
Uma certa mulher, casada com um médico oftalmologista e que, assombro dos assombros, foi, segundo testemunhos dignos de suficiente crédito, a única pessoa que há quatro anos escapou à terrível epidemia que fez da nossa pátria um país de cegos, essa mulher é considerada pela polícia como a provável culpada da nova cegueira… É motivo para dizer que mais lhe valia ter cegado.
Eles, tal como muitos outros cidadãos da cidade sitiada, são perseguidos pelas forças policiais, até ao momento em que o homem de gravata azul com pintas brancas subiu o terraço de um prédio quase fronteiro às traseiras daquele em que vivem…
Então um cego perguntou, Ouviste alguma coisa, Três tiros, respondeu o outro, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro, Ainda bem, detesto ouvir os cães a uivar.
Fim!
Não sendo o melhor romance de Saramago é sempre um deleite ler, ou reler, o nosso Nobel.
(Sugiro que comecem por ler o livro “Ensaio sobre a cegueira”)
 
Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago
Caminho, 2004
329 págs.

4 comentários:

  1. Olá Teresa,

    Já não trocamos opiniões há bastante tempo.
    Para mim este livro é um dos melhores de Saramago, o Memorial é o melhor ;-)
    Na realidade era bom que os cidadãos tivessem consciência e obrigassem a que as coisas mudassem, mas olhando para a situação atual, é mais fácil passarmos daquilo que hoje chamamos democracia para uma ditadura, do que termos consciência e obrigarmos os políticos a mudarem de rumo. Vivermos numa ditadura seria dramático…

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  2. Olá Tiago.
    É verdade, há algum tempo que não "falávamos".
    Ando um pouco arredada do convívio bloguista devido a doença de uma familiar, que me deixa sem tempo nem disposição. Tudo passará.
    Concordo consigo, as coisas por aqui estão negras e não se vê da parte dos políticos vontade de fazer seja o que for para melhorar a situação. Deus nos livre de uma ditadura...
    Mudando de assunto, preparo-me para ler (nunca li)"O ano da morte de Ricardo Reis". Que tal é?
    Boas leituras.

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  3. Olá Teresa,

    Espero que tudo passa depressa e que as coisas correm como deseja.
    Relativamente ao livro de Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, está na minha estante à espera...mas, tratando-se de um livro de Saramago, certamente é bom ;-)

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    1. Obrigada, Tiago.
      Já estou embrenhada na leitura de Saramago.
      Depois lhe conto...
      Bom fim-de-semana.

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