06 julho, 2012

"A confissão da leoa" - Mia Couto

- Você, Mariamar, é que vai contar histórias.
- Mas eu sou uma menina, nunca cacei, nunca irei caçar…
- Todos já caçámos, todos já fomos caçados.
Pois é, Mia Couto “caçou-me” com este excelente romance. Ou poema?
Agora, lamento nunca ter lido nada dele. Ainda vou a tempo, os livros estão todos ali, alinhados por um moçambicano cioso das histórias da sua terra.
O leão não devora apenas pessoas. Devora a nossa própria humanidade.
A história baseia-se num acontecimento real, que ocorreu no norte de Moçambique, em 2008: inesperadamente, leões penetram em áreas habitacionais e tornam-se comedores de pessoas.
O pânico apodera-se dos habitantes da região. Não percebem o que se passa e não conseguem apanhar os leões assassinos, que em poucos meses fazem vinte e seis vítimas: vinte e cinco mulheres e um homem.
Mia Couto, que na altura trabalhava na região como biólogo, assiste ao desespero daquela gente e pede a Maputo que para ali mande caçadores experientes. Mandaram dois e só ao fim de dois meses os leões foram abatidos.
Isto foi o que realmente se passou.
Agora, neste romance extraordinário, o autor mistura de forma convincente o real com o irreal e conta a história através de dois narradores/personagens, que dividem entre si os capítulos do livro:
- a versão de Mariamar, uma jovem abusada pelo pai, Genito Mpepe, e maltratada pela mãe; uma jovem que aprendeu a ler com os animais; uma leoa que fez da palavra a sua arma, numa terra onde uma mulher… não é ninguém. Mariamar tem um sonho – viajar para a cidade e encontrar o homem que caçou o seu coração há dezasseis anos atrás.
- e o diário de Arcanjo Baleio, o estranho caçador (caçado) que foge da amada Luzilia, a cunhada, para fazer a sua última caçada, numa região onde já estivera há dezasseis anos atrás.
Sou caçador, sei o que é perseguir uma presa. Toda a minha vida, porém, fui eu o perseguido,
Tudo se passa na aldeia de Kulumani, um lugar onde vivem os pobres e os donos da pobreza, onde não há polícia, não há governo, e mesmo Deus só há às vezes.
A guerra passou por Kulumani e deixou um rasto de extrema miséria. Ali, a fome, o misticismo e a feitiçaria transformam os homens em bichos e os bichos em homens. Ali, a espingarda usa-se para caçar os fazedores de leões.
Para fazer a reportagem da caçada, chega com Baleio o jornalista/escritor Gustavo Regalo, o homem branco que odeia a caça, mas quer falar com testemunhas sobre os ataques dos leões,  ouvir relatos sobre a guerra civil e… ver Baleio matar os comedores de pessoas.
Os aldeões olham-no com estranheza e colocam-lhe a pergunta chave deste romance:
Querem saber como morremos? Mas nunca ninguém veio saber como vivemos.
Eu acreditei a cem por cento nesta história – um hino à mulher moçambicana - narrada com a mestria dos que sabem "batucar" com as palavras e criar personagens convincentes e inesquecíveis.
Que bem escreve este fazedor de palavras.

A confissão da leoa, de Mia Couto
Editorial Caminho, 2012
270 págs.

8 comentários:

  1. Mia Couto é outro daqueles escritores de que nunca li nada. Nem sei bem porquê, pois digo sempre que vou comprar um livro dele, acabo por escolher outro e lá fica o Mia Couto para depois.
    A ver se mudo isso.
    Boas leituras

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    1. Olá Patrícia,
      Comigo aconteceu o mesmo, até que caçei esta leoa.
      Adorei o livro.
      Compra, lê e... ficarás "apanhada" pelo autor.
      Bjs.

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  2. Mia Couto é um verdadeiro contador de histórias. Quanto mais leio os livros dele, mais apaixonada fico pelas suas estórias.
    Este ainda não li.

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    1. Olá!
      Concordo contigo. Eu fiquei apanhadinha!!!
      Lê este que vais gostar.
      Bjs.

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  3. Este livro do Mia Couto ainda não conhecia.Mais um para a minha lista de leituras.
    Li à pouco tempo a Varanda do Frangipani e gostei imenso. Acho-o muito poético e com muita sensibilidade. No entanto não é toda a gente que gosta das suas histórias.

    Bjinhos

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    1. Olá Landa,
      Este foi o meu primeiro Mia Couto. Gostei muito e vou continuar a lê-lo, apesar de não achar muita graça às "palavras inventadas" que, sei, aparecem em obras anteriores.
      Tomei nota do que referes acerca d' "A varanda do Frangipani".
      Bjs.

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  4. Um bom livro, mas ainda prefiro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra;

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    1. Olá Tiago,
      Não conheço este livro mas vou procurá-lo. Gostei do título...

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