Quando se tem só pele e osso, sentimentos são coragem. Eu prefiro ser cobarde.
No Posfácio deste romance sobre a deportação de seres humanos no pós-guerra, ficamos a saber que a mãe da autora estava entre os alemães residentes na Romênia, com idades compreendidas entre os 17 e os 45 anos, deportados por Estaline para prestarem trabalhos forçados em campos soviéticos. Interessada em divulgar este episódio maldito vivido no final da Segunda Grande Guerra, Herta Müller inicia, em 2001 a recolha de testemunhos sobre o quotidiano nesses campos, junto de sobreviventes deportados da sua aldeia. Esses testemunhos de horror estão na base deste romance.
Sentei-me à mesa e esperei pela meia-noite. E a meia-noite chegou, mas a patrulha estava atrasada. Ainda tiveram de passar mais três horas, foi quase insuportável de aguentar. Depois chegaram. A mãe segurou-me o sobretudo debruado a veludo preto. Enfiei-me nele. Ela chorou. Calcei as luvas verdes. No corredor, precisamente onde fica o contador do gás, a avó disse: EU SEI QUE VOLTAS.
Eram 3 da madrugada do dia 15 de Janeiro de 1945 quando a patrulha me foi buscar.
E foram cinco os anos que Leopold Auberg, de dezassete anos, passou num campo de trabalhos forçados. Cinco anos de muito sofrimento, que o tornaram um ser humano diferente, mas não um monstro, impedido pelas memórias familiares que não deixou morrer e pela da frase da avó: eu sei que voltas.
O quotidiano no campo, onde cada um vive o seu presente, onde o frio corta, a fome engana, o cansaço pesa, a saudade corrói, os percevejos e os piolhos mordem, é narrado em 64 pequenos capítulos de pura e dura prosa poética.
Tudo é descrito de forma tão real que nos sentimos transportar para aquele universo de horror, dor, morte e muita, muita fome.
Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Não há palavras adequadas ao sofrimento da fome. Eu como literalmente a própria vida, desde que não tenho de passar fome. Gosto tanto de comer que não quero morrer, porque depois nunca mais como.
No princípio de Janeiro de 1950, Leopold regressa a casa da família, mas ali sente-se agora um estranho. Nada daquilo tinha a ver comigo. Conhecíamo-nos uns aos outros como já não somos e nunca mais seremos.
Começa a trabalhar, constitui família mas acaba sozinho Um dos seus tesouros diz: Preciso muito de proximidade, mas sou incapaz de me entregar. Domino o sedoso sorriso da esquiva. Desde o anjo da fome, não permito que ninguém me tenha.
Não foi só o protagonista / narrador deste romance avassalador, cruel, duro e triste que cresceu e se tornou uma pessoa diferente. Também eu, enquanto leitora, senti um possante muro no estômago que me ensinou sobre a precariedade da vida, sobre o comportamento humano perante a injustiça, o medo, a fome, a crueldade e a morte.
Há uma eternidade que não chorava, tinha ensinado a saudade a ter os olhos secos.
Hoje, voltei a chorar.
Tudo o que eu tenho trago comigo, de Herta Müller (Prémio Nobel de Literatura 2009)
Dom Quixote, 2010
Tradução de Aires Graça
290 págs.