23 novembro, 2011

"O retorno" - Dulce Maria Cardoso

Descemos as escadas do avião e a minha irmã disse, estamos na metrópole. Não sabíamos o que havíamos de fazer. Foi esquisito pisar na metrópole, era como se estivéssemos a entrar no mapa que estava pendurado na sala de aula.
Corria o ano de 1975, Portugal vivia em pleno processo revolucionário e assistia ao ruir do império.
Em poucos meses, mais de meio milhão de portugueses foram forçados a abandonar as colónias e a regressar à metrópole. Eram os “retornados”.
Este fantástico romance de Dulce Maria Cardoso é o relato emocionado do retorno à metrópole de uma família que vive em Luanda, onde o pai tem um negócio de transportes. O pai que “foi para África para fintar a pobreza”. O pai que “sempre tratou bem dos pretos”. O pai que não vem com eles para a metrópole. Porquê?
Conhecemos a família quando a mãe doente, que não gosta de sol nem de sal só de rosas, escreve com canela no arroz doce as iniciais dos seus nomes: R de Rui, L de Lurdes (a irmã mais velha), M de Mário e G de Glória.
Depois, é o Rui, adolescente de 15 anos que, sob a forma de monólogo, relata de forma minuciosa os últimos dias da família em Luanda, a “fuga” para a metrópole, e os longos e desesperantes meses passados num hotel virado para o mar.
O mar da metrópole é tão azul como o mar era lá, um mar quase igual, talvez um bocado mais pequeno.
O realismo da vida no hotel, onde se amontoam centenas de pessoas, que sabem que tem de se manter unidas porque “os de cá ainda gostam menos de nós do que os pretos” é comovente. Viver no hotel de cinco estrelas era horrível para um rapazinho, mas mais horrível era o medo de ser posto fora do hotel.
… no hotel não há ninguém que não tenha medo. Todos tentam disfarçar, disfarçam tanto que a sala de convívio ou a da televisão chegam a parecer uma festa. Mas é uma festa de gente triste. Agora então que o verão acabou acho que a tristeza da metrópole entra em nós como se fosse o ar que respiramos. E o frio.
Poupam, mas os vinte contos que trouxeram estão a acabar. Encontram ajuda em bichas que vão dar ao IARN e na penhora das jóias da mãe.
No IARN (Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais) estavam retornados de todos os cantos do império, o império estava ali, naquela sala, um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de que ninguém queria saber.
Os meses passam e Rui volta à escola, faz amizades, descobre a sexualidade, anda com más companhias, aprende a tomar conta da mãe e da irmã, espera pela chegada do pai, reinventa a esperança.
No hotel há também muita gente de Moçambique.
Às vezes os de Angola e os de Moçambique desentendem-se acerca de qual era a melhor colónia. Não consigo perceber porque é que discutem tanto qual era a melhor colónia se já perdemos as duas.

A leitura deste livro levou-me à arca de memórias onde guardo a história do meu retorno à metrópole, em Março de 1975. Eu vim de Moçambique. Felizmente tinha à minha espera uns sogros maravilhosos, uma casa quentinha e muito amor. Felizmente, não vivi a dor que a autora deste livro viveu.
Obrigada, Dulce Maria Cardoso, pelo seu extraordinário testemunho. Finalmente alguém teve a coragem de mostrar aos portugueses da metrópole, que nem tudo foi fácil para os retornados.
Hoje sabemos que foi a coragem, a força e a determinação dessa gente que ajudou a mudar mentalidades, numa metrópole tacanha, cinzenta e triste.
Em mim, em si, África estará sempre presente mas cada vez mais longe.

O retorno, de Dulce Maria Cardoso
Tinta-da-China, 2011
267 págs.

3 comentários:

  1. Uma das minhas lacunas como leitora é precisamente a literatura contemporânea, mais precisamente a Lusófona e devo dizer que nunca tinha ouvido falar desta escritora até ter visto parte da entrevista dada pela Câmara Clara sobre este livro. E, se já fazia questão de o ler, agora, depois desta opinião, penso que o vou comprar assim que tiver oportunidade.

    Boas leituras!

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  2. O livro que estou a ler de António Lobo Antunes, Comissão das Lágrimas, fala também dessa época.
    Nessa obra fala-se pouco do que se passou em Lisboa, fala-se é sobretudo do que se passou em África e do que os "retornados" ainda hoje passam em Portugal.
    O livro fala da culpa e do perdão, na incerteza no futuro, do racismo, da culpa de ambos os lados e da crueldade humana.
    Os aspectos que mais me chocaram neste livro são o de como o silêncio pode ser aterrador; assim como a ausência da importância da morte; também é aterrador o relato das pessoas que saem deixando tudo para traz, ao invés os que ficam ou são assassinados ou vêem tudo ser destruído.
    É impressionante como o ser humano é capaz de ser tão cruel com a sua espécie.

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  3. Olá Landa,
    Estamos sempre a tempo de fazer novas descobertas. Eu ainda só li este livro da autora, mas sei que já editou vários.
    Eu já decidi - no próximo ano vou ler mais autores lusófonos.

    Olá Tiago,
    Parece-me interessante esse livro de Lobo Antunes.
    Agora que estou numa de "descolonizaçao", talvez me deixe entusiasmar.

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